Adotado por profissionais sobrecarregados, o comportamento é mais uma estratégia de sobrevivência do trabalho do que o ato de jogar a toalha
Por Eduardo Vani —
Tão logo foi contratada em uma grande empresa de turismo, Luísa (nome fictício) teve a qualidade de seu trabalho elogiada pelos chefes e, embora ainda ocupasse o cargo de analista, ganhou responsabilidades de líder e passou a orientar três assistentes. Achou glamouroso e seguiu se dedicando. Encarou maratonas de horas extra e teve a oportunidade de trabalhar uma temporada nos Estados Unidos.
Veio a pandemia, e a jovem, de 32 anos, enfrentou redução salarial e de jornada em 75%, demissão de colegas, aumento das demandas e nenhum reconhecimento pelo esforço. Cinco anos se passaram desde a contratação, e ela segue como... analista. Virou, então, uma chave: “Continuava batendo as minhas metas, mas não recebi promoção. Senti-me traída. Você sempre trabalha mais e ganha pouco”."
Foi então que ela passou a se cobrar menos. Deixou de correr para entregar imediatamente as demandas e se esforçar para superar os resultados. “Já tive medo de que me demitissem, mas hoje quero que isso aconteça”, diz ela, que definiu o próximo dia 15 como limite para deixar a empresa. Quer mudar de carreira e ingressar na faculdade Pedagogia.
Só recentemente Luísa descobriu que existia um nome para a sua saga: “quiet quitting”. A expressão inglesa, que pode ser traduzida como “demissão silenciosa”, tem a ver "com uma postura em que os funcionários estabelecem limites claros entre a vida pessoal e profissional e entendem que não fazer nada mais do que o estabelecido no contrato de trabalho é um direito quase sagrado. O termo se popularizou na esteira de outro fenômeno recente identificado no universo profissional, a chamada grande demissão ou “the great resignation”, aferido nos Estados Unidos, onde uma onda "de pessoas infelizes com suas ocupações abdicaram de seus empregos mesmo em tempos de recessão.
Os tópicos serviram como um prato cheio para as "redes sociais sedentas por novas pautas e, no Brasil, logo ganharam postagens acaloradas defendendo a adesão desses comportamentos ou comemorando uma possível mudança de paradigmas. Segundo especialistas, porém, tudo deve ser observado com cautela. A Firjan, por exemplo, foi atrás de números e identificou que, de fato, foram registradas 2,9 milhões de demissões voluntárias no Brasil, de janeiro a maio de 2022. Embora seja um número alto, uma análise mais aprofundada mostrou se tratar "de uma realidade um tanto restrita. Cargos na área de Tecnologia da Informação ocupados por pessoas com nível superior respondiam por boa parte dessas ocorrências. São profissionais que podem se dar ao luxo de agirem assim porque têm um mercado aquecido. “A grande demissão no Brasil abarca os mais jovens e com um nível de instrução alto”, resume o gerente de estudos econômicos da Firjan, Jonathas Goulart.
Fora desse recorte, portanto, não há uma grande mudança em curso, como identifica a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da sede brasileira da International Stress Management Association. Ela lembra que uma pesquisa feita pela entidade há cerca de cinco anos descobriu que menos de 5% das empresas no Brasil têm políticas efetivas em relação à saúde mental dos funcionários, algo que não mudou significativamente. “Os gestores sabem que essas demandas existem, mas, infelizmente, a cultura do empresariado ainda é de sugar os funcionários até o bagaço e, quando eles não têm mais nada a oferecer, os demitem. Sabem que podem substituí-los num estalar de dedos”, resume, reiterando profissionais da tecnologia como exceção por terem mais oportunidades. “A grande maioria da população depende de seus empregos e tem medo de perdê-lo”, diz ela, lembrando que, por isso, muitas pessoas acabam convivendo com o assédio e abuso. “Nestes casos, resta ir à Justiça, o que nem sempre é fácil.”
Ainda assim, segundo ela, quando esses fenômenos encontram ecos por aqui tendem a abarcar jovens que ainda não constituíram família e têm a possibilidade de morar na casa dos pais. “As pessoas estão dando mais valor à vida do que ao trabalho, o que pode ter a ver com a pandemia. Todo o mundo viu como a existência pode ser breve. Preferem, muitas vezes, ganhar menos do que ficar numa empresa "até adoecerem e ter um burnout.”
Professora da ESPM nas áreas de carreira e gestão de pessoas, Edna Rodrigues Bedani também considera esses fenômenos como algo fora da realidade brasileira, mas percebe mudanças em curso. “Estamos num momento de transição e aprendizado grande para entender como manter a produtividade e a competitividade, sem exigir que os profissionais façam muito além do que está no contrato "de trabalho”, afirma. “Há empresas flexibilizando a jornada com modelos híbridos e revisando o programa de benefícios com oferta de ações de cuidado à saúde.”
Do ponto de vista dos gestores, Edna lembra que eles estão no mesmo contexto de aprendizado do que os demais funcionários e também são cobrados por resultados pelas empresas. “Alguns líderes, mais humanizados e maduros, gerenciam de forma adequada as adversidades e outros não, o que deixa as pessoas mais inseguras”, pondera. “O desafio é encontrar o equilíbrio entre as exigências e as horas de trabalho contratadas. Afinal, as jornadas longas são sufocantes e não produtivas.”
Trata-se aqui de uma questão bastante cara aos defensores do “quiet quitting”. Mas, antes de adotar essa máxima, lembrar que toda atitude implica em consequências também pode ser importante. O recado é dado por uma gerente de projetos que mora no Rio e trabalha numa empresa europeia onde, segundo ela, há uma colega que sempre “fecha a lojinha” na hora exata do fim do expediente, independentemente das demandas."
A profissional, que tem 37 anos e prefere não se identificar, afirma ter tirado uma lição dessa experiência. “O ideal seria que as próprias empresas cuidassem para que ninguém se sobrecarregasse. Como isso não acontece, acho mais válido nós mesmos nos organizarmos para dividir melhor as tarefas”, afirma. Ao dizer isso, ela lembra que, quando sua colega se recusa a fazer mais do que deve, alguém terá que dar conta do que foi deixado pelo caminho. “Quando olho para essa situação, penso na máxima de que ‘nenhuma revolução se faz sozinha’.”