O cientista político, que no início dos anos 1990 ficou célebre por falar do "fim da história", volta com um livro em que identifica novas ameaças ao liberalismo clássico
Por Sergio Fanjul, El País — Madri
O filósofo Francis Fukuyama, de 69 anos, ganhou fama mundial por decretar "o fim da história" — título de ensaio publicado em 1989, cuja premissa se baseia na vitória da democracia liberal capitalista sobre o socialismo— após a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria. Agora, em seu novo livro, "Liberalismo e seus descontentes" (2022), o cientista político da Universidade Stanford e uma das vozes conservadoras mais conhecidas da academia americana detecta novas ameaças ao liberalismo clássico que defende.
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Para o autor, por um lado, o neoliberalismo equivocado demonizou o Estado, acabando com a solidariedade e deixando tudo a cargo da pulsão individual, gerando uma desigualdade insustentável. Por outro, há as correntes identitárias descontroladas, tanto no nacionalismo adepto de teorias da conspiração quanto na esquerda muito focada nas minorias.
Confira abaixo a entrevista do autor concedida ao jornal El País:
Quando falamos de liberalismo, podemos associá-lo à centro-direita, embora se pensarmos nos tempos da Revolução Francesa, parece estar na origem da esquerda.
Uso uma definição muito ampla de liberalismo que não está relacionada à ideologia. Minha definição diz que é uma doutrina que protege os direitos individuais e limita o poder do Estado. Pode ser da direita ou da esquerda, o que importa é o Estado de direito como fundamento de uma sociedade.
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Como o liberalismo desembocou no neoliberalismo que o senhor critica?
Nos anos 1970 havia um excesso de regulação estatal. Aí apareceram os políticos como Ronald Reagam e Margaret Thatcher que tentam limitar parte dela e foram apoiados por economistas como Milton Friedman. O problema é que foram longe demais, tentaram minar todo tipo de regulação estatal, incluindo no sistema financeiro. O resultado foi uma globalização que aumentou a desigualdade e a instabilidade do sistema financeiro global. E provocou uma resposta populista tanto de direita quanto de esquerda.
Às vezes se ouve, de posições liberais, uma justificativa para a desigualdade econômica. Até que ponto essa desigualdade se justifica?
Acredito que deve haver sempre um equilíbrio entre crescimento econômico estável e proteção social para os cidadãos. Se você tem um Estado que busca redistribuir renda de forma geral, inevitavelmente reduzirá o incentivo das empresas que assumem mais risco. É por isso que algumas economias ficam presas ao não permitir esse tipo de economia livre.
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Carro é visto nos escombros na rua principal da vila de Slatina após uma forte inundação nas vilas de Slatina, Bogdan e Karavelovo, na Bulgária — Foto: NIKOLAY DOYCHINOV / AFP
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Equipes de resgate evacuam moradores após um terremoto de magnitude 6,6 no condado de Luding, Ganzi, na província de Sichuan, sudoeste da China — Foto: STR / AFP
Mas agora a desigualdade está começando a ser problemática.
Não pode ser generalizado. A América Latina experimentou o mais alto grau de desigualdade visto no mundo. Muitas das políticas que vemos na Argentina ou na Venezuela são o resultado dessa desigualdade, que leva a resultados econômicos desastrosos e políticas muito ruins, uma grande polarização entre a esquerda populista e a direita ultraconservadora. Em outras partes do mundo outras coisas acontecem. Na Europa, na Escandinávia, existe há muito tempo a social-democracia, que se encarregou de redistribuir a riqueza, o que impediu a polarização.
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Precisamente, seu livro dá a impressão de abordar a social-democracia.
Nunca me opus à social-democracia. Depende muito do momento histórico. Na década de 1960, as sociedades social-democratas sofriam com inflação alta e crescimento muito lento, e naquele momento acho que era importante conter um pouco disso. No período em que vivemos agora, precisamos de mais democracia social. Principalmente nos EUA, onde nem temos saúde universal, sendo um país democrático e rico.
Na Espanha, quando as pessoas falam sobre política de identidade, como o feminismo ou o movimento LGTB+, às vezes é criticado como coletivismo. Em seu livro parecem fincar suas raízes no liberalismo clássico, na afirmação dos indivíduos.
A política de identidade surge porque certos grupos são discriminados e é perfeitamente legítimo usar a identidade como meio de lutar contra essa discriminação. Mas se torna problemática quando a identidade se torna primordial, quando você pode julgar uma pessoa por sua participação em algum grupo e não por quem ela é como indivíduo.
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Às vezes, esses grupos são acusados ??de promover uma cultura de cancelamento. Essa cultura existe?
Nos EUA existem algumas formas muito intolerantes de política progressista que não querem que visões alternativas sejam expressas, algo especialmente problemático nas universidades, que são lugares dedicados à liberdade de expressão.
Existem casos na Espanha, mas não está claro se merecem o nome de "cultura".
Bem, não é uma cultura geral. Nos EUA é provavelmente um fenômeno mais difundido do que em outros países, mas tem a ver com nossa história de desigualdade racial, que se tornou um padrão para outras demandas. Mas concordo que não está claro que é uma cultura como tal. É algo que acontece em algumas instituições, mídia, universidades, Hollywood, mas não é uma cultura enraizada na sociedade.
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Como a internet afetou a forma como falamos sobre política?
Acho que a internet tornou possível amplificar certas vozes em uma escala sem precedentes, mas também foi capaz de silenciar outras. Porque as redes sociais são o meio mais poderoso de crítica política e isso é problemático. Queremos que todas as vozes tenham um peso similar, mas não me parece legítimo que uma empresa tecnológica privada tenha esse poder.
O liberalismo defende a autonomia do indivíduo. Até que ponto as sociedades devem ser individualistas?
Acredito que todas as sociedades devam ter valores sociais comuns. Uma linguagem comum, um conjunto de referências comuns, para poder interagir. Quando os indivíduos inventam seus próprios valores ou vivem em comunidades de bolhas, acho que é um excesso de individualismo. E essa tem sido a tendência nas sociedades liberais: o indivíduo foi promovido até perder o juízo.
Existe o risco de ir para um mundo não liberal?
Existem duas ameaças. O mais grave vem do nacionalismo populista: Orbán, Erdogan ou Trump. Todas essas pessoas, eleitas democraticamente, usam seu poder para ameaçar as instituições democráticas. A outra vem da esquerda, e tem a ver, sobretudo, com o campo cultural.
O liberalismo e a democracia são sempre companheiros de viagem?
Eles são aliados e se apoiam, mas não precisam necessariamente existir ao mesmo tempo. Orbán quer uma democracia não liberal, com eleições, mas sem liberdade de imprensa ou crença, ou oposição livre. Há também sociedades liberais sem democracia, como Cingapura: há liberdade individual, mas não há eleições.
O que você acha do recém-falecido Mikhail Gorbachev?
Deixa um legado muito misto. Ele não queria que a URSS desmoronasse, mas entre os comunistas ele tinha tendências muito liberais. Ele também pediu mais liberdade de expressão e isso acabou erodindo a União Soviética: quando eles podiam falar livremente, o que eles diziam em muitos lugares era que queriam que seu país fosse independente. Acho que sem Gorbachev esses países ainda estariam presos em uma ditadura soviética, então, historicamente, sou muito grato a ele.
Você falou então do famoso "fim da história". Agora falamos mais sobre o fim do mundo.
Eu nunca disse que a democracia liberal triunfaria em todos os lugares, nem que era o sistema que acabaria com todos os nossos problemas. Se você pegar algo como a mudança climática, especialmente gerada pelo crescimento econômico, não acho que a democracia liberal seja pior em gerenciá-la do que um governo autoritário, como às vezes se pensa. As democracias têm sido mais eficientes na redução das emissões. A economia chinesa, por exemplo, é baseada em combustíveis fósseis.
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Como você vê o futuro da civilização?
Acho que estou otimista no sentido de que houve muito progresso histórico. E acho que vai continuar a acontecer no futuro. Acredito, por exemplo, que muitos dos problemas causados ??pela tecnologia podem ser resolvidos pela própria tecnologia. Mas não sei o que vai acontecer. Também não acho que seja especialmente produtivo adotar uma visão pessimista. Se acharmos que tudo vai dar errado, não faremos nenhum esforço para corrigir o que não vai bem.