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Segurança e as Novas Tecnologias na Construção Civil

Higiene Ocupacional: Quebrando Paradigmas

Tente viver com a parte de sua alma que compreende a eternidade, que não tem medo da morte e esta parte da sua alma é amor.
Leon Tolstoi
24/08/2022

Para além das eleições

Luiz Felipe F. C. de Farias

Atu­al­mente, a maior parte do dis­curso dito crí­tico ao bol­so­na­rismo in­ter­preta seu fenô­meno ex­clu­si­va­mente a partir da di­nâ­mica elei­toral e cre­dita sua re­si­li­ência a fer­ra­mentas de de­sin­for­mação em massa ou a pro­gramas pú­blicos de trans­fe­rência de renda em mo­mentos po­lí­ticos de­ci­sivos. Nesta lei­tura, o bol­so­na­rismo é re­du­zido a uma ex­pressão pon­tual e pas­sa­geira de ir­ra­ci­o­na­li­dade po­lí­tica, algo como um pe­sa­delo de que acor­da­remos após uma even­tual vi­tória elei­toral de Luiz Inácio Lula da Silva, capaz de res­taurar a nor­ma­li­dade dos pactos so­ciais e do quadro ins­ti­tu­ci­onal vi­gentes após 1988. Si­lencia-se, assim, sobre a pos­si­bi­li­dade de o bol­so­na­rismo ser a ex­pressão de trans­for­ma­ções mais pro­fundas na es­tru­tura da so­ci­e­dade de classes no Brasil, mi­ni­mizam-se os im­passes ra­di­cais da cha­mada “Nova Re­pú­blica” e ocultam-se de­sa­fios do em­bate contra este fenô­meno para além das elei­ções.

O pacto so­cial es­ta­be­le­cido pela Cons­ti­tuição de 1988 ex­pressou as po­tên­cias e os li­mites do con­junto de forças so­ciais que ti­veram re­la­tivo pro­ta­go­nismo no pro­cesso que levou ao fim da di­ta­dura civil-mi­litar no Brasil. Cons­truído de modo a pre­servar im­por­tantes es­tru­turas de poder con­so­li­dadas du­rante a di­ta­dura, nosso atual quadro ins­ti­tu­ci­onal for­mal­mente de­mo­crá­tico ainda assim pos­si­bi­litou a am­pli­ação de ca­nais de pressão po­pular sobre o poder pú­blico e a cri­ação de fer­ra­mentas de re­la­tiva re­dução de de­si­gual­dades so­ciais.

Si­mul­ta­ne­a­mente, en­tre­tanto, du­rante as úl­timas quatro dé­cadas de “Nova Re­pú­blica” in­ten­si­fi­caram-se trans­for­ma­ções es­tru­tu­rais na so­ci­e­dade bra­si­leira, que le­varam à emer­gência de novas forças do­tadas de in­qui­e­ta­ções e ho­ri­zontes que pa­recem trans­bordar aquele pacto so­cial es­ta­be­le­cido em 1988.

Con­tra­ri­ando ilu­sões pas­sadas e pre­sentes acerca do al­cance e da so­lidez que a de­mo­cracia li­beral enfim teria al­can­çado em nossas terras, a “Nova Re­pú­blica” pa­rece ter ges­tado em seu in­te­rior im­pulsos que hoje a co­locam em xeque.

De­sin­dus­tri­a­li­zação e es­go­ta­mento dos pro­jetos de mo­der­ni­zação so­cial

Dentre as trans­for­ma­ções na es­tru­tura da so­ci­e­dade de classes no Brasil nas úl­timas quatro dé­cadas des­taca-se o pro­cesso de de­sin­dus­tri­a­li­zação. Se­gundo carta do Ins­ti­tuto de Es­tudos para o De­sen­vol­vi­mento In­dus­trial (IEDI) pu­bli­cada em junho de 2021, entre 1980 e 2020, a par­cela da ma­nu­fa­tura no PIB do Brasil re­cuou cons­tan­te­mente, en­quanto o grau de in­dus­tri­a­li­zação da eco­nomia mun­dial au­mentou du­rante as úl­timas quatro dé­cadas, im­pul­si­o­nado es­pe­ci­al­mente pelas trans­for­ma­ções na eco­nomia e na so­ci­e­dade chi­nesas.

En­quanto a ma­nu­fa­tura bra­si­leira re­duziu sua par­ti­ci­pação no PIB na­ci­onal de 21,1% em 1980 para 11,9% em 2020, o grau de in­dus­tri­a­li­zação em es­cala mun­dial elevou-se de 15,6% para 16,56% do PIB global no mesmo pe­ríodo. Trata-se de uma mu­dança es­tru­tural de longo prazo do pa­drão de ar­ti­cu­lação do Brasil com o mer­cado in­ter­na­ci­onal, com pro­fundos des­do­bra­mentos sobre a di­nâ­mica da so­ci­e­dade de classes no Brasil.

Esta pro­funda trans­for­mação co­de­ter­minou o re­la­tivo es­go­ta­mento das forças so­ciais e dos pro­jetos de mo­der­ni­zação con­cor­rentes que er­gueram e ani­maram a cha­mada Nova Re­pú­blica no Brasil, a partir da dé­cada de 1980. Pri­mei­ra­mente, tal pro­cesso de de­sin­dus­tri­a­li­zação tem sido acom­pa­nhado de uma erosão dos apa­re­lhos de he­ge­monia que per­mi­tiram às fra­ções das classes do­mi­nantes no Su­deste e à in­te­lec­tu­a­li­dade or­gâ­nica es­pe­ci­al­mente em São Paulo con­so­li­darem um re­la­tivo con­senso na so­ci­e­dade civil em es­cala na­ci­onal. Ór­gãos de im­prensa es­crita, emis­soras de te­le­visão, uni­ver­si­dades pú­blicas, fe­de­ra­ções in­dus­trias e apa­re­lhos par­ti­dá­rios se­di­ados pri­o­ri­ta­ri­a­mente na re­gião Su­deste, cada um com sua di­nâ­mica pró­pria, têm per­dido ca­pa­ci­dade de di­rigir in­te­resses, ela­borar va­lores e ori­entar ex­pec­ta­tivas no país como um todo.

Des­taca-se neste pro­cesso o es­go­ta­mento do pro­jeto ca­rac­te­rís­tico do Par­tido da So­cial De­mo­cracia Bra­si­leira (PSDB) de li­be­ra­li­zação e in­ter­na­ci­o­na­li­zação da eco­nomia bra­si­leira, com o pre­tenso ob­je­tivo de cor­rigir dis­tor­ções e que­brar pri­vi­lé­gios de elites oli­gár­quicas no in­te­rior de um Es­tado pa­tri­mo­ni­a­lista. Con­tra­ri­a­mente às ilu­sões ca­rac­te­rís­ticas dos anos 1990, a in­serção do Brasil na cha­mada glo­ba­li­zação não pro­moveu uma ra­ci­o­na­li­zação econô­mica e so­cial, mas antes des­gastou os pró­prios fun­da­mentos da so­ci­e­dade mo­derna no país. Chama a atenção neste con­texto o fra­casso cres­cente da in­tel­li­gentsia pau­lista em torno deste par­tido em apre­sentar nas úl­timas duas dé­cadas can­di­da­turas pre­si­den­ciais mi­ni­ma­mente ca­pazes de se afirmar em es­cala na­ci­onal.

Pa­ra­le­la­mente, o pro­cesso de de­sin­dus­tri­a­li­zação também co­de­ter­minou uma ace­le­rada trans­for­mação da mor­fo­logia da classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira, com des­taque para a quebra do pro­ta­go­nismo so­cial do ope­ra­riado da re­gião Su­deste, que es­teve à frente do as­censo de lutas po­pu­lares da dé­cada de 1980. As redes de so­li­da­ri­e­dade ani­madas pelo ca­to­li­cismo po­pular que es­ti­veram na gê­nese da Cen­tral Única dos Tra­ba­lha­dores e do Par­tido dos Tra­ba­lha­dores per­deram sua ca­pa­ci­dade de in­ter­pretar as in­qui­e­ta­ções e ori­entar as es­pe­ranças de uma ju­ven­tude tra­ba­lha­dora dis­tante do chão de fá­brica, dis­persa pelo es­paço ur­bano, mo­vida a mo­to­ci­cletas e ar­ti­cu­lada por pla­ta­formas on­line. Trata-se de uma ju­ven­tude tra­ba­lha­dora mar­cada por um grau re­la­ti­va­mente mais alto de es­co­la­ri­zação formal em com­pa­ração com as ge­ra­ções pas­sadas, atra­ves­sada por mai­ores ex­pec­ta­tivas de as­censão so­cial e pela in­qui­e­tação pe­rante a per­ma­nência crô­nica de sua su­bal­ter­ni­dade econô­mica e po­lí­tica.

Pe­rante tais su­jeitos, o Par­tido dos Tra­ba­lha­dores (PT) pa­rece ainda capaz de mo­bi­lizar in­te­resses por meio de pro­gramas pon­tuais de trans­fe­rência de renda, mas pa­rece in­capaz de ofe­recer ho­ri­zontes es­tra­té­gicos que criem novo va­lores. Isso de­corre do com­pleto es­go­ta­mento do dis­curso dito (neo)de­sen­vol­vi­men­tista, que apos­tava na rein­dus­tri­a­li­zação bra­si­leira ca­pi­ta­neada pelo poder pú­blico e por em­pre­sá­rios ele­vados à con­dição de “players glo­bais” como con­dição para maior au­to­nomia na­ci­onal e ex­tensão da ci­da­dania sa­la­rial às massas.

Se nas dé­cadas de 1950 e 1960 a es­tra­tégia de­sen­vol­vi­men­tista e a aposta em uma bur­guesia na­ci­onal cul­mi­naram em uma tra­gédia, nas dé­cadas 2000 e 2010 a re­e­dição desta tra­di­ci­onal re­tó­rica da es­querda bra­si­leira foi apenas uma farsa.

Re­pri­ma­ri­zação e pro­ta­go­nismo cres­cente do agro­ne­gócio e do ne­o­ex­tra­ti­vismo

A des­peito de sua re­tó­rica mo­der­ni­zante, tanto os go­vernos da PSDB quanto os do PT es­ti­mu­laram um ace­le­rado pro­cesso de re­pri­ma­ri­zação da pauta de ex­por­ta­ções bra­si­leiras, bus­cando res­ponder aos cons­tran­gi­mentos e ins­ta­bi­li­dades de crises fi­nan­ceiras glo­bais que am­pli­aram sua frequência e in­ten­si­dade a partir da dé­cada de 1990. Com isso, a po­sição do Brasil na di­visão in­ter­na­ci­onal do tra­balho al­terou-se ra­pi­da­mente, pro­vo­cando mu­danças na cor­re­lação de forças dentre as fra­ções das classes do­mi­nantes que com­põem o bloco no poder que di­rige este país.

Em uma trans­for­mação ge­o­po­lí­tica de con­sequên­cias ainda im­pre­vistas, a par­cela di­ri­gida à China (in­cluindo Hong Kong e Macau) das ex­por­ta­ções bra­si­leiras au­mentou de 2,8% em 2000 para 27,9% em 2018, en­quanto a par­ti­ci­pação dos EUA dentro do con­junto caiu de 23,9% para 12% neste pe­ríodo. Este in­cre­mento das re­la­ções co­mer­ciais com a China levou a um au­mento da ex­por­tação bra­si­leira de pro­dutos bá­sicos como mi­nério de ferro e soja em grãos e ao au­mento de im­por­ta­ções es­pe­ci­al­mente de pro­dutos ma­nu­fa­tu­rados, in­ten­si­fi­cando o en­fra­que­ci­mento de ca­deias pro­du­tivas in­dus­triais na­ci­o­nais e for­ta­le­cendo ca­deias pro­du­tivas li­gadas às com­mo­di­ties mi­ne­rais e agrí­colas. Dentro deste con­texto, se­gundo o Mi­nis­tério da In­dús­tria, Co­mércio Ex­te­rior e Ser­viços, a par­ti­ci­pação dos pro­dutos ma­nu­fa­tu­rados nas ex­por­ta­ções to­tais do Brasil caiu de 59% em 2000 para 36% em 2019, en­quanto a par­ti­ci­pação dos pro­dutos bá­sicos au­mentou de 23% para 51% no mesmo pe­ríodo.

Con­so­lidou-se assim um novo pro­ta­go­nismo po­lí­tico, econô­mico e cul­tural no sé­culo 21 de fra­ções das classes do­mi­nantes vin­cu­lados à pro­dução e co­mer­ci­a­li­zação de com­mo­di­ties mi­ne­rais, agrí­colas e agro­pro­ces­sadas no país. Trata-se de se­tores econô­micos que pos­suem al­gumas ca­rac­te­rís­ticas co­muns:

1) ca­deias pro­du­tivas pouco densas com ca­pa­ci­dade li­mi­tada para im­pul­si­onar re­la­ções so­ciais cres­cen­te­mente com­plexas, di­ver­si­fi­cadas e di­nâ­micas;

2) baixa ge­ração de em­pregos for­mais e ho­ri­zontes es­treitos de ex­tensão de ci­da­dania sa­la­rial às massas tra­ba­lha­doras;

3) apro­pri­ação voraz de terras com des­do­bra­mentos de­gra­dantes sobre ter­ri­tó­rios sob sua in­fluência;

4) mo­bi­li­zação di­reta ou in­di­reta de vi­o­lência pa­ra­mi­litar como fer­ra­menta de con­trole so­cial.

For­maram-se sob estas bases cen­tros de poder em es­paços ur­banos de médio porte pelo in­te­rior do Brasil que de­mandam novos ca­nais de re­pre­sen­tação, ainda in­ca­pazes de exercer he­ge­monia em es­cala na­ci­onal, mas com ca­pa­ci­dade cres­cente de pautar as de­ci­sões do poder pú­blico e mesmo par­cela sig­ni­fi­ca­tiva da pro­dução cul­tural do país.

Es­pe­ci­fi­ca­mente, o com­plexo da soja vem mos­trando uma ca­pa­ci­dade im­pres­si­o­nante de re­or­ga­ni­zação de ampla par­cela do ter­ri­tório na­ci­onal: se­gundo o Ins­ti­tuto Bra­si­leiro de Ge­o­grafia e Es­ta­tís­tica, entre 2000 e 2018 a pro­dução de soja no Brasil saltou de 32,8 mi­lhões de to­ne­ladas em 13,7 mi­lhões de hec­tares para 117,9 mi­lhões de to­ne­ladas em 34,8 mi­lhões de hec­tares.

Seg­mento cen­tral do cha­mado agro­ne­gócio, o com­plexo da soja tornou-se de­ci­sivo para o atual pa­drão de ar­ti­cu­lação do Brasil com o mer­cado in­ter­na­ci­onal: se­gundo as sé­ries his­tó­ricas do Mi­nis­tério da In­dús­tria, Co­mércio Ex­te­rior e Ser­viços, as ex­por­ta­ções bra­si­leiras de soja em grãos, fa­relo e óleo sal­taram de US$ 4,2 bi­lhões (equi­va­lentes a 7,5% de toda ex­por­tação do país em 2000) para US$ 40,7 bi­lhões (equi­va­lentes a 17% de toda ex­por­tação do país em 2018).

Im­pactos so­ci­o­am­bi­en­tais desta ex­pansão avas­sa­la­dora da so­ji­cul­tura são ilus­trados pela obra Ge­o­grafia do uso de agro­tó­xicos no Brasil e co­ne­xões com a União Eu­ro­peia, pu­bli­cada em 2017 pela pro­fes­sora La­rissa Mies Bom­bardi. Se­gundo Bom­bardi, o con­sumo de agro­tó­xicos no Brasil saltou 135% em 15 anos pas­sando de 170.000 to­ne­ladas no ano 2000 para 500.000 to­ne­ladas em 2014, li­de­rado pela so­ji­cul­tura que con­sumiu 52% dos agro­tó­xicos do país em 2015. Ainda se­gundo a au­tora, entre os anos de 2007 e 2014 houve no Brasil cerca de 25 mil in­to­xi­ca­ções por agro­tó­xicos no­ti­fi­cadas ao Mi­nis­tério da Saúde (equi­va­lentes a 3.125 casos no­ti­fi­cados por ano ou ainda 8 in­to­xi­ca­ções diá­rias). Con­tudo, de­vido à taxa de sub­no­ti­fi­cação es­ti­mada na ordem de 1 para 50, a au­tora con­si­dera pos­sível dizer que houve 1.250.000 in­to­xi­ca­ções por agro­tó­xicos no país du­rante este pe­ríodo.

Si­mi­lar­mente, a ca­deia pro­du­tiva de mi­nério de ferro também se tornou um elo fun­da­mental de ar­ti­cu­lação do Brasil com o mer­cado in­ter­na­ci­onal. Se­gundo as sé­ries his­tó­ricas do Mi­nis­tério da In­dús­tria, Co­mércio Ex­te­rior e Ser­viços, ex­por­ta­ções bra­si­leiras de mi­nério de ferro sal­taram de US$3 bi­lhões (equi­va­lentes a 5,5% das ex­por­ta­ções to­tais do Brasil em 2000) para US$44,6 bi­lhões (equi­va­lentes a 15,9% das ex­por­ta­ções to­tais do Brasil em 2021).

De acordo com o Dossiê de­sas­tres e crimes da mi­ne­ração em Bar­ca­rena, Ma­riana e Bru­ma­dinho, or­ga­ni­zado pelos pro­fes­sores Edna Castro e Eu­nápio do Carmo e pu­bli­cado no ano de 2019, tal cres­ci­mento econô­mico ver­ti­gi­noso vem sendo acom­pa­nhado de di­versas ex­ter­na­li­za­ções dos riscos so­ci­o­am­bi­en­tais sobre “zonas de sa­cri­fício”. Os au­tores cons­troem um ba­lanço crí­tico das po­lí­ticas pú­blicas e das prá­ticas em­pre­sa­riais da mi­ne­ração nos es­tados do Pará, Ma­ra­nhão e Minas Ge­rais, e des­tacam três eventos que sim­bo­lizam os im­passes do Brasil con­tem­po­râneo: o rom­pi­mento em 2015 da bar­ragem de re­jeitos da mina do Fundão da em­presa Sa­marco, pro­vo­cando di­re­ta­mente o óbito de 19 pes­soas em Ma­riana (MG); o va­za­mento em 2018 de re­jeitos de bau­xita da bar­ragem da mi­ne­ra­dora Hydro Alu­norte, con­ta­mi­nando rios e imenso ter­ri­tório no mu­ni­cípio de Bar­ca­rena (PA); o rom­pi­mento em 2019 da bar­ragem de re­jeitos da mina do Cór­rego Feijão da em­presa Vale do Rio Doce, ma­tando 272 pes­soas em Bru­ma­dinho (MG).

Acu­mu­lação pri­mi­tiva per­ma­nente e sig­ni­fi­cado es­tra­té­gico da re­gião amazô­nica

O que pa­rece uni­ficar e dar sen­tido às forças que di­rigem tais ca­deias de com­mo­di­ties mi­ne­rais e agro­pro­ces­sadas é o apro­fun­da­mento da acu­mu­lação pri­mi­tiva per­ma­nente na re­gião amazô­nica, um dos mai­ores bol­sões de re­cursos co­muns ainda não re­du­zidos à con­dição de pro­pri­e­dade pri­vada no mundo hoje. His­to­ri­ca­mente, a apro­pri­ação ul­tra­con­cen­trada de terras pú­blicas (e, con­se­quen­te­mente, de renda da terra) no in­te­rior do Brasil foi um dos fun­da­mentos para a for­mação de ca­pital ur­bano in­dus­trial du­rante o sé­culo 20. Pe­ríodos de im­passe na acu­mu­lação de ca­pital foram assim res­pon­didos du­rante ci­clos di­ta­to­riais pela ace­le­ração do avanço sobre a fron­teira amazô­nica, com des­taque para a Marcha para o Oeste du­rante o Es­tado Novo var­guista na dé­cada de 1940 e para in­cen­tivos fis­cais e cre­di­tí­cios da Su­pe­rin­ten­dência para o De­sen­vol­vi­mento da Amazônia (Sudam) du­rante a di­ta­dura entre 1964 e 1985.

A par­ti­cu­la­ri­dade do atual flerte com um novo pe­ríodo de ex­ceção não é, por­tanto, uma in­ten­si­fi­cação do re­gime de es­po­li­ação sobre a re­gião amazô­nica, mas sim o fato de que esta acu­mu­lação pri­mi­tiva per­ma­nente não pa­rece hoje servir de ala­vanca aos pro­cessos de in­dus­tri­a­li­zação do país. Pa­rece antes ter se tor­nado um ho­ri­zonte es­tra­té­gico por si só capaz de uni­ficar par­cela das fra­ções das classes do­mi­nantes que com­põem o bloco no poder, em um con­texto de aborto das pre­ten­sões de um Brasil mo­derno e de re­gressão a um pa­drão pri­mário-ex­por­tador de ar­ti­cu­lação com o mer­cado in­ter­na­ci­onal.

Se­gundo mapa pu­bli­cado pelo jornal Nexo em abril de 2017, cerca de 47% do ter­ri­tório bra­si­leiro ainda é com­posto de terras pú­blicas con­cen­tradas so­bre­tudo na re­gião Norte, in­cluindo áreas mi­li­tares, terras in­dí­genas, uni­dades de con­ser­vação e terras pú­blicas ainda não des­ti­nadas pelo poder pú­blico. Se­gundo a pu­bli­cação, terras in­dí­genas re­pre­sentam hoje 13% da área do país, com des­taque para 3 uni­dades da fe­de­ração com mai­ores per­cen­tuais de áreas in­dí­genas em seus ter­ri­tó­rios: Ro­raima (46%), Ama­zonas (28%) e Pará (22%). Por sua vez, as uni­dades de con­ser­vação am­bi­ental cor­res­pondem a 12% da área do país, em que mais uma vez se des­tacam 3 es­tados pela pro­porção destas uni­dades em suas terras: Amapá (63%), Acre (32%) e Pará (26%).

Es­pe­ci­al­mente vul­ne­rá­veis a dis­putas, gri­la­gens e des­ma­ta­mentos ile­gais, terras pú­blicas não des­ti­nadas ou “des­pro­te­gidas” (às quais o go­verno fe­deral ainda não deu ne­nhum des­tino) cor­res­pondem a 10% do ter­ri­tório na­ci­onal (maior que as áreas so­madas de São Paulo e Minas Ge­rais) e con­cen­tram-se es­pe­ci­al­mente nos es­tados do Ama­zonas (35%), Acre (19%) e Ro­raima (17%).

A uni­dade es­tra­té­gica dos se­tores vin­cu­lados ao agro­ne­gócio e ao ne­o­ex­tra­ti­vismo de­corre do ob­je­tivo comum de trans­formar estas re­servas de re­cursos pú­blicos em renda da terra, ainda que existam dentre estes se­tores im­por­tantes di­ver­gên­cias tá­ticas quanto à ma­neira como isso deve ser re­a­li­zado.

O re­la­tório Car­to­gra­fias das vi­o­lên­cias na re­gião amazô­nica, pu­bli­cado em 2021 e pro­du­zido pelo Fórum Bra­si­leiro de Se­gu­rança Pú­blica em par­ceria com o Ins­ti­tuto Clima e So­ci­e­dade e com o Grupo de Pes­quisa Terra (UEPA), re­gistra a di­mensão da vi­o­lência mo­bi­li­zada por esta acu­mu­lação pri­mi­tiva. Se­gundo este re­la­tório, entre 2011 a 2020 houve um salto de 47,3% nas mortes vi­o­lentas in­ten­ci­o­nais (MVI) na re­gião amazô­nica com des­taque para o cres­ci­mento de ho­mi­cí­dios nos mu­ni­cí­pios ru­rais e in­ter­me­diá­rios amazô­nicos, em con­textos de in­ten­si­fi­cação de crimes am­bi­en­tais e con­flitos fun­diá­rios.

Com­pa­rando taxas de Mortes Vi­o­lentas In­ten­ci­o­nais por zonas de ocu­pação em 2020, o re­la­tório aponta que os mu­ni­cí­pios com as mai­ores taxas são aqueles sob pressão de des­ma­ta­mento (37,1 por 100 mil ha­bi­tantes), se­guidos por mu­ni­cí­pios des­ma­tados (34,6) e por mu­ni­cí­pios não flo­res­tais (29,7), en­quanto mu­ni­cí­pios flo­res­tais apre­sen­taram a menor taxa de le­ta­li­dade da re­gião (24,9).

O re­la­tório também aponta que a vi­o­lência de­cor­rente da gri­lagem de terras, do des­ma­ta­mento, do mer­cado ilegal de ma­deira e do ga­rimpo ilegal tem sido po­ten­ci­a­li­zados pela pre­sença de fac­ções do crime or­ga­ni­zado e pelas dis­putas entre elas por rotas na­ci­o­nais e trans­na­ci­o­nais de drogas que cruzam a re­gião. Tal cres­cente pro­ta­go­nismo de mer­cados ile­gais e sua com­plexa ar­ti­cu­lação com as redes de poder re­la­ci­o­nadas aos crimes so­ci­o­am­bi­en­tais fi­zeram com que entre 1980 e 2019 a taxa de mor­ta­li­dade por ho­mi­cídio tenha cres­cido 260,3% na re­gião Norte, en­quanto na re­gião Su­deste ela caiu 19,2% no mesmo pe­ríodo.

Os povos ori­gi­ná­rios na re­gião amazô­nica são um alvo pre­fe­ren­cial desta es­ca­lada de vi­o­lência, mas também um im­por­tante foco de re­sis­tência às ir­ra­ci­o­na­li­dades so­ci­o­am­bi­en­tais desta ace­le­ração da acu­mu­lação pri­mi­tiva. O re­la­tório Vi­o­lência Contra os Povos In­dí­genas do Brasil – dados de 2020, pu­bli­cado pelo Con­selho In­di­ge­nista Mis­si­o­nário (Cimi) iden­ti­ficou na­quele ano 263 casos de “in­va­sões pos­ses­só­rias, ex­plo­ração ilegal de re­cursos e danos ao pa­trimônio” em pelo menos 201 terras in­dí­genas, de 145 povos, em 19 es­tados.

Se­gundo a mesma fonte, trata-se de um au­mento em com­pa­ração com o ano de 2019 quando foram con­ta­bi­li­zados 256 casos e um acrés­cimo ver­ti­gi­noso de 137% em com­pa­ração com o ano de 2018, quando foram iden­ti­fi­cados 111 casos.

Por sua vez, o re­la­tório Fun­dação Anti-in­dí­gena: um re­trato da Funai sob o go­verno Bol­so­naro, pu­bli­cado em 2022 e pro­du­zido pelo Ins­ti­tuto de Es­tudos So­ci­o­e­conô­micos (Inesc) e In­di­ge­nistas As­so­ci­ados (INA), faz um ba­lanço crí­tico da “Nova Fun­dação Na­ci­onal do Índio”, es­pe­ci­al­mente a partir de 2019 quando as­sumiu a pre­si­dência do órgão o de­le­gado da Po­lícia Fe­deral Mar­celo Xa­vier.

O re­la­tório des­taca a pre­sença cres­cente de mi­li­tares e po­li­ciais na ins­ti­tuição: 27 das 39 Co­or­de­na­ções Re­gi­o­nais da Funai ti­veram chefes no­me­ados de fora dos qua­dros do órgão, sendo de­zes­sete mi­li­tares, três po­li­ciais mi­li­tares, um po­li­cial fe­deral e seis pes­soas sem vín­culo prévio com a ad­mi­nis­tração pú­blica. A des­peito dos es­forços da “Nova Funai” para im­pedir que pro­cessos de­mar­ca­tó­rios pen­dentes al­cancem a etapa de ho­mo­lo­gação, para en­fra­quecer me­ca­nismos de pro­teção e atu­ação nas TIs não ho­mo­lo­gadas e para re­gu­la­rizar formas ve­ladas de ar­ren­da­mento em TIs para ex­plo­ração agro­pe­cuária, mi­ne­ra­dora e ma­dei­reira, o re­la­tório des­taca que o anti-in­di­ge­nismo ru­ra­lista da era Bol­so­naro não lo­grou ne­nhuma efe­tiva mu­dança le­gis­la­tiva até o mo­mento. Es­pe­ci­fi­ca­mente o jul­ga­mento pa­ra­dig­má­tico sobre o marco tem­poral das terras in­dí­genas segue até o mo­mento uma ba­talha in­con­clusa, in­dício da ca­pa­ci­dade de re­sis­tência dos povos ori­gi­ná­rios pe­rante a ofen­siva da acu­mu­lação pri­mi­tiva.

Con­clusão

Este texto propôs-se le­vantar a hi­pó­tese de que o bol­so­na­rismo não pode ser con­si­de­rado uma ex­pressão pon­tual e pas­sa­geira de ir­ra­ci­o­na­li­dade po­lí­tica. Pro­pomos in­ter­pretar o bol­so­na­rismo como a ex­pressão de uma pro­funda trans­for­mação da acu­mu­lação de ca­pital e da so­ci­e­dade de classes no Brasil, pri­meiro en­saio he­gemô­nico de se­tores vin­cu­lados às ca­deias pro­du­tivas de com­mo­di­ties mi­ne­rais e agrí­colas gal­va­ni­zados em torno do ho­ri­zonte es­tra­té­gico de in­ten­si­fi­cação da acu­mu­lação pri­mi­tiva sobre a re­gião amazô­nica.

De acordo com esta lei­tura o bol­so­na­rismo é ra­di­cal­mente dis­tinto tanto dos re­gimes na­zi­fas­cistas na Itália e na Ale­manha nas dé­cadas de 1920 e 1930 quanto das di­ta­duras mi­li­tares na Amé­rica La­tina nas dé­cadas de 1960 e 1970. Todos estes re­gimes im­pul­si­o­naram pro­cessos ace­le­rados de in­dus­tri­a­li­zação cuja força cen­trí­peta foi fun­da­mental à con­so­li­dação dos es­tados de ex­ceção. Ao con­trário, o bol­so­na­rismo é re­sul­tado do crô­nico pro­cesso de de­sin­dus­tri­a­li­zação que levou ao aborto dos pro­jetos de mo­der­ni­zação so­cial que ha­viam ani­mado a cons­trução da “Nova Re­pú­blica” a partir da dé­cada de 1980. Mar­cado pela força cen­trí­fuga dos novos cen­tros de poder que se for­ta­le­ceram pelo in­te­rior do país com a re­pri­ma­ri­zação da pauta de ex­por­ta­ções bra­si­leiras, o bol­so­na­rismo não pa­rece capaz de con­so­lidar um novo pacto so­cial que es­ta­be­leça mí­nimo con­senso dentre as classes no in­te­rior da so­ci­e­dade civil, mas pa­rece capaz de ace­lerar a erosão das bases da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade vi­gente.

Por sua vez, forças ditas à es­querda no Brasil não ofe­recem ho­ri­zonte es­tra­té­gico que re­co­nheça o im­passe ci­vi­li­za­tório em que mer­gu­lhamos. Apri­si­o­nada em cál­culos de ca­ráter prag­má­tico res­tritos à di­nâ­mica elei­toral, estas forças ditas à es­querda tomam como dado in­ques­ti­o­nável um quadro ins­ti­tu­ci­onal for­mal­mente de­mo­crá­tico em franco pro­cesso de de­com­po­sição. Assim, res­tringem-se a um dis­curso de ca­ráter nos­tál­gico com po­ten­cial de­cres­cente de mo­bi­lizar a in­qui­e­tação de uma ju­ven­tude tra­ba­lha­dora imersa em re­la­ções de tra­balho e es­paços ur­banos cres­cen­te­mente pre­ca­ri­zados.

Este dis­curso nos­tál­gico pa­rece su­fi­ci­ente para an­ga­riar votos dentre as ca­madas mais afe­tadas pela crise econô­mica e com me­mória viva da es­ta­bi­li­dade re­cente, mas um even­tual go­verno Lula III pos­suirá menos fi­chas e terá de pagar mais caro para im­ple­mentar me­ca­nismos mí­nimos de re­dução da de­si­gual­dade e neu­tra­li­zação dos con­flitos so­ciais como os que vi­go­raram na dé­cada de 2000.

Po­de­remos, então, ver o bol­so­na­rismo der­ro­tado nas elei­ções de 2022, porém, ainda assim com ca­pa­ci­dade de mo­bi­li­zação es­tável ou cres­cente em um con­texto de in­go­ver­na­bi­li­dade crô­nica e de crise ins­ti­tu­ci­onal aguda.

Luiz Fe­lipe F. C. de Fa­rias é Doutor em so­ci­o­logia pela Uni­ver­si­dade de São Paulo (USP).

Leia mais do autor: In­qui­e­tação so­cial e con­ser­va­do­rismo po­pular (21/10/2021)

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Bi­bli­o­grafia

BOM­BARDI, La­rissa Mies. Ge­o­grafia do uso de agro­tó­xicos no Brasil e co­ne­xões com a União Eu­ro­peia. São Paulo: FFLCH – USP, 2017

CASTRO, Edna; CARMO, Eu­nápio. Dossiê De­sas­tres e Crimes da Mi­ne­ração em Bar­ca­rena, Ma­riana e Bru­ma­dinho. Belém: NAEA – UFPA, 2019.

CENTRO IN­DI­GE­NISTA MIS­SI­O­NÁRIO. Vi­o­lência Contra os Povos In­dí­genas no Brasil: Dados de 2020. Dis­po­nível em https://?cimi.?org.?br/?wp-?content/?uploads/?2021/?11/?rel?ator?io-?vio?lenc?ia-?povos-?ind?igen?as-?2020-?cimi.?pdf. Acesso em 10/07/2022.

FÓRUM BRA­SI­LEIRO DE SE­GU­RANÇA PÚ­BLICA. Car­to­gra­fias das vi­o­lên­cias na re­gião amazô­nica: Re­la­tório final. Dis­po­nível em https://?for?umse?gura?nca.?org.?br/?wp-?content/?uploads/?2022/?03/?vio?lenc?ia-?ama?zoni?ca-?rel?ator?io-?final-?web.?pdf. Acesso em 10/07/2022.

IEDI, Carta 1085. Dis­po­nível em https://?iedi.?org.?br/?cartas/?carta_?iedi_?n_?1085.?html. Acesso em 10/07/2022

INS­TI­TUTO DE ES­TUDOS SO­CI­O­E­CONÔ­MICOS. Fun­dação anti-in­dí­gena: Um re­trato da Funai sob o go­verno Bol­so­naro. Dis­po­nível em https://?www.?inesc.?org.?br/?wp-?content/?uploads/?2022/?06/?Fun?daca?o-?anti-?ind?igen?a_?Inesc_?INA.?pdf. Acesso em 10/07/2022.

NEXO. Pú­blicas e pri­vadas: A di­visão de terras no ter­ri­tório bra­si­leiro. Dis­po­nível em https://?www.?nex?ojor?nal.?com.?br/?grafico/?2017/?04/?07/?P%C3%BAb?lica?s-?e-?pri?vada?s-?a-?div?is%C3%A3o-?de-?terras-?no-?ter?rit%C3%B3r?io-?bra?sile?iro. Acesso em 10/07/2022.

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Fonte: Correio da Cidadania
 
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