Em meio aos efeitos de uma pandemia e com economia estagnada, assunto volta à tona no Congresso Nacional
Por Fenafisco
Um espectro ronda o Congresso Nacional: a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas. Tão certa como a eleição marcada para ocorrer a cada quatro anos, a discussão sobre essa nova forma de taxação emerge quando o governo federal se encontra em apuros pela falta de arrecadação. Em 2021 não é diferente.
Desde 1989, ano seguinte à promulgação da Constituição Federal, ao menos 37 projetos foram propostos por deputados e senadores para poder, enfim, regulamentar a tributação, que está prevista no artigo 153 do texto constitucional. O mais antigo deles é uma iniciativa do então senador – e, depois, presidente – Fernando Henrique Cardoso (PSDB), aprovada no Senado e que, há mais de 30 anos, aguarda análise da Câmara dos Deputados. O mais recente é o Projeto de Complementar (PLC) 101, proposto pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), de julho deste ano. Este último prevê taxar entre 0,5% e 5% os brasileiros que tenham, ao menos, 4,6 milhões de reais em patrimônio, contando, por exemplo, os imóveis, navios e aeronaves, veículos, objetos de arte, dinheiro em espécie, ações em empresas ou direitos de propriedade intelectual. A cobrança seria feita uma única vez e a justificativa do senador para a proposta é que o montante seja usado para minimizar os impactos da pandemia da Covid-19.
Ao longo das últimas três décadas, no entanto, ainda persiste uma dúvida básica sobre o tema: “o que é uma grande fortuna?”. A verdade é que ninguém sabe e cada projeto parte de uma definição específica, a começar do valor considerado para ser enquadrado como grande fortuna. No texto original do projeto de FHC, o primeiro deles, grande fortuna era considerado um montante superior a 2 milhões de cruzados novos. A moeda foi extinta em, 1990, mas o valor, convertido à época, daria algo em torno de 177 mil dólares – cerca de 950 mil reais na cotação atual. Já o PL 38/2020, outro projeto sobre o mesmo assunto, considera que só os cidadãos com mais de 55 milhões de reais seriam incluídos no imposto.
Além disso, há uma série de outras perguntas que devem ser respondidas de forma clara e que variam de uma proposta para outra, o que dificulta até a comparação entre os textos dos parlamentares. Afinal, de que tipo de patrimônio estamos falando? Dinheiro aplicado entraria na conta? E os bens? Nesse caso, bens ociosos ou somente os que estão submetidos ao sistema produtivo? Outra questão é a preocupação em não cometer excessos ou enquadrar nessa nova tributação quem não deveria ser taxado. Afinal, como garantir que o referido imposto não iria onerar cidadãos que passaram a vida poupando recursos para terem mais tranquilidade em um determinado momento da vida?
Os entusiastas da implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas argumentam que o tributo seria uma maneira de fazer “justiça social” e que os valores arrecadados poderiam ser revertidos para ações de diminuição da desigualdade. Dados de um estudo do Banco Mundial colocam o Brasil no 9º lugar entre os países mais desiguais do mundo. Já os críticos ao projeto levantam a hipótese de que, caso instituída, a taxa serviria como gatilho para fuga de investimentos e capitais do Brasil para outros países. A tese faz sentido se observarmos exemplos pelo mundo. Um dos mais conhecidos é o da França, que instituiu sua versão do imposto ainda na década de 1980, durante o governo do socialista François Mitterrand. O tributo foi abolido em, 2017, por Emmanuel Macron, depois que diversos milionários deixaram o país.
O exemplo mais emblemático é o ator Gérard Depardieu, que mudou sua residência, em um primeiro momento, para a Bélgica e depois, para a Rússia, país onde se naturalizou. O ator de Os Miseráveis, que já foi um dos artistas mais bem pagos do mundo, tem um patrimônio estimado em 245 milhões de dólares – ou mais de 1,3 bilhão de reais na cotação de hoje. Para o advogado André Mendes Moreira, do escritório Sacha Calmon Mizabel Derzi, a regulamentação do imposto agravaria a já existente competição global de atração de empresas e pessoas endinheiradas. “Existem países europeus que, mediante a compra de um imóvel, ou investimento de 500 mil euros, dão a cidadania de presente ao investidor. Isso faz parte dessa competição mundial, de países que competem entre si para atrair empresas para suas jurisdições”, afirma. “Eles oferecem a menor carga tributária possível, falta de transparência em relação aos verdadeiros sócios e outros benefícios para que o empreendedor se sinta confortável em instalar sua empresa ou a sede dela naquele país.”
Especialistas são quase unânimes em afirmar que o Brasil não tem problemas de arrecadação, mas de alocação dos recursos. “Nossa atual arrecadação não é baixa para dizermos ser necessário majorá-la. O Brasil encontra-se entre os países com a maior incidência tributária do globo”, diz Bady Curi, sócio titular do Bady Curi Advocacia Empresarial. “A forma com que tais recursos são utilizados muitas vezes compromete sua eficiência e a eficácia, transmitindo a falsa impressão de que a arrecadação é insuficiente.” Ele acredita, no entanto, que feitos os ajustes necessários, “há certa valia na instituição de tal imposto, que promoverá maior distribuição de renda, com potencial de balancear a grande desigualdade social”. Bady considera que o país não deveria nem tratar de qualquer aumento ou criação de um novo imposto sem uma reforma administrativa séria. “Sabemos que há setores em que funcionários públicos trabalham muito, mas, também, é verdade que em outros a máquina administrativa está inchada. O aumento de impostos para fazer frente a estes setores está na contramão da eficiência do Estado.”
Para o sócio-fundador do Amin Ferraz, Coelho & Thompson Flores Advogados, Daniel Amin Ferraz, a adoção do Imposto sobre Grandes Fortunas seria uma estratégia imediatista, “que não resolveria em absoluto o problema de desequilíbrio das contas públicas e que, tão somente, aumentaria a carga tributária brasileira, que beira a loucura dos 40% sobre o PIB”. Precisaríamos, então, de acordo com Daniel Amin, de uma diminuição da carga tributária sobre o PIB, e não do seu incremento. “É urgente que o Brasil faça uma reforma do Estado, com a busca de maior eficiência na aplicação dos recursos públicos, paraque ele custe menos para o cidadão.”
Se não há consenso sobre a efetividade da medida com relação à definição do que pode ou não ser considerado patrimônio, tampouco há certeza se o Imposto sobre Grandes Fortunas conseguirá cumprir seu objetivo primordial, ou seja, o de aumentar a arrecadação para o Tesouro. Parece uma contradição, mas o próprio exemplo de Depardieu ajuda a explicar. Quando ele mudou seu domicílio para uma cidade belga localizada a 1 km da fronteira com a França e, mais tarde, se tornou cidadão russo, ele não deixou apenas de pagar o IGF, mas também passou a pagar o Imposto de Renda em outro território, que não o francês. Uma dupla perda para o Tesouro do país.
Há algumas análises mostrando que boa parte dos conglomerados financeiros sequer seriam enquadrados na legislação. Isso porque, em sua maior parte, os projetos que tratam da regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas preveem taxação sobre pessoas físicas e não jurídicas, que concentram a maior parte das fortunas. “Nos casos em que os patrimônios estiverem eventualmente alocados nas pessoas físicas, estas passarão a constituir pessoas jurídicas com a única finalidade de transferir e realocar seus bens, afastando a incidência do possível Imposto sobre Grandes Fortunas”, afirma Bruno Junqueira, fundador do BLJ Direito e Negócios. Ainda assim ele acredita que a taxação sobre fortunas de pessoas físicas provocaria tanto fuga de capitais quanto de mentes brilhantes. “Por isso, a iniciativa trará mais malefícios que benefícios, para o nosso país.”
Se entre os advogados tributaristas é praticamente consenso de que a medida não traria os efeitos esperados, como o aumento da arrecadação, eles também concordam que a tributação da renda faria mais sentido para que o governo pudesse chegar a esse objetivo. “Tributar patrimônio é retirar água de uma piscina. Uma hora ela esvazia. Economias globais no último século optaram por tributar a renda e, desde o século XV, por tributar o consumo, que têm fluxos constantes”, explica o advogado André Mendes Moreira. “Após se ajustar os problemas envolvendo a administração pública, caso se constate que realmente há uma necessidade do aumento da arrecadação, que esta seja voltada para a tributação sobre as transferências de bens obtidos de forma gratuita, ou seja, sobre doações e heranças, seguindo o modelo da maioria dos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)”, diz Bruno Junqueira.
Saiba o que pretende taxar o mais recente projeto sobre taxação de grandes fortunas
Número do projeto: PLC 101/2021
Autor: Randolfe Rodrigues (Rede-AP)
Data da proposta: 7 de julho de 2021
Tributação: 0,5% a 5%
Patrimônio: a partir de R$ 4,67 milhões
Tipo de patrimônio tributável: imóveis e direitos reais constituídos sobre bens neles localizados, navios e aeronaves, veículos motorizados, bens móveis (antiguidades, obras de arte, objetos de uso pessoal e utensílios), dinheiro e depósitos em dinheiro, títulos, ações, quotas e participação social em empresas e direitos de propriedade científica, literária ou artística)
Cobrança: única vez
Tramitação: comissão do Senado
Aplicação da verba arrecadada: 50% para assistência à saúde, principalmente de combate à pandemia, e 50% para complementação do auxílio emergencial.
(Com colaboração da redação)
Fonte: Encontro Revista