Ladislau Dowbor e Daniel Conceição demonstram: o neoliberalismo fiscal está em crise. Um novo governo terá meios para ampliar direitos sociais, renovar infraestrutura e gerar milhões de ocupações. O essencial é recriar horizonte político
INVESTIMENTO PÚBLICO PARA A TRANSFORMAÇÃO
por Daniel Conceição e Ladislau Dowbor
Entrevista a Antonio Martins
Reconstruir o Brasil em novas bases exigirá muitos atributos: inteligência, horizontes, planejamento, trabalho, recursos, estratégia política. Mas na noite de 8 de julho, quando abriram a série de diálogos do projeto Resgate, Ladislau Dowbor e Daniel Conceição, dois economistas de origens e trajetórias muito distintas, ajudaram a desfazer um bloqueio. Eles concordaram que, a uma sociedade e um novo governo empenhados na transformação do país, não faltará dinheiro. A consonância em torno desta possibilidade não representa pouco. Ao longo das últimas quatro décadas, o pensamento econômico neoliberal sustentou que tal projeto era impossível. A obrigação essencial dos governantes, dizia-se, era cumprir uma “disciplina fiscal” que impedia qualquer passo mais ousado – e restringiu, mesmo no período dos presidentes de esquerda, ações decididas rumo às reformas estruturais.
Agora, este consenso está sendo desmentido, mostraram Dowbor e Conceição. Os sinais mais claros vêm, por enquanto do plano internacional. Os Estados Unidos desencadearam, após a eleição de Joe Biden, um programa de socorro às famílias, de geração de ocupações e de investimentos em infraestrutura e tecnologia que é, sozinho, 2,5 vezes maior que a economia brasileira. A China alcançou, muito antes, êxitos notáveis nos campos econômico, social e – mais recentemente – ambiental precisamente por ignorar o princípio segundo o qual os Estados “estão limitados a gastar apenas o que arrecadam”. E, além destes casos emblemáticos, há a experiência da pandemia. Em emergência, para evitar um naufrágio ainda maior, praticamente todos os governos multiplicaram seus gastos – inclusive o do Brasil, onde o Palácio do Planalto sabotou o combate à pandemia mas foi obrigado a pagar, por nove meses, um auxílio emergencial de R$ 600.
Qual o segredo deste início de virada? E até onde ele pode nos levar? Dowbor e Conceição argumentaram que no âmago da mudança está uma nova compreensão, desmistificadora, sobre o papel do dinheiro. Para os Estados, a moeda nacional não é nem um ente místico, que só pode ser criado por uma classe especial de financistas, nem um bem escasso, que precisa ser obtido da sociedade por meio de impostos. Os Estados produzem a moeda – esta, portanto, jamais lhes faltará. E ao fazê-lo podem modificar o balanço entre as riquezas dos diversos atores sociais. Emitir trilhões de dólares em favor dos credores da dívida pública, como se fez em todo o mundo, nas crises financeiras de 2008 e 2020, enriquece os super-ricos, o 0,1%. Não foi à toa, lembrou Ladislau, que nos quatro primeiros meses de pandemia os 42 bilionários brasileiros ampliaram suas fortunas em R$ 180 bilhões – o equivalente a seis anos de bolsa-família, que beneficia 30 milhões de pessoas.
Mas emitir moeda em favor do Comum tem o efeito oposto, frisou Conceição. Se o Estado assegurar que a Educação e a Saúde pública serão as de excelência, uma vasta parcela da população se verá desobrigada de pagar planos e mensalidades privadas. Se a sociedade estiver disposta a respaldar um programa de transformação da infraestrutura que assegure saneamento para todos, despolua os rios urbanos, transforme as periferias e construa redes de metrô nas metróples, dezenas de milhões de empregos dignos podem ser gerados. Os mesmos mecanismos monetários e financeiros que hoje aprofundam a desigualdade podem ser revertidos e agir em sentido contrário. Não falta dinheiro – e sim, vontade política. Mas para reacender esta vontade é essencial superar a impotência gerada pelo medo de desobedecer a “disciplina fiscal” que favorece o 0,1%.
A emissão de moeda não produzirá hiperinflação? Ladislau e Daniel contrapuseram a esta verdade de almanaque um pensamento muito mais sofisticado. Uma inflação “de demanda” pode ser provocada, argumentaram, quando se busca tirar da economia aquilo – recursos ou força de trabalho – que ela não tem condições de oferecer. Uma Renda Básica exorbitante produziria o desejo adquirir o que não se pode, nas condições atuais, produzir.
Mas o cenário da economia brasileira é oposto a este. O problema é que os recursos existentes são desaproveitados, porque o neoliberalismo fiscal e as estruturas seculares de injustiça impedem utilizá-los. A produção está abaixo do nível de 2011, lembra Ladislau. Há uma multidão de desocupados ou subocupados: gente que não encontra trabalho, ou é obrigada a exercer atividades muito aquém de sua qualificação. A indústria opera com quase 50% de capacidade ociosa. Há um gigantesco desperdício da terra: uma superfície equivalente à de cinco Itálias está destinada à especulação fundiária ou reservada a atividades pouquíssimo intensas, como a pecuária extensiva. A “inflação de demanda” está, portanto, a anos-luz de distância. Há enorme espaço para mobilizar a potência desaproveitada do país, se houver horizonte político para tanto.
Isso significa, então, que não necessitamos de uma Reforma Tributária? Errado, argumenta Daniel Conceição. O Estado não precisa desta reforma para emitir dinheiro. Mas ela é um instrumento indispensável de justiça social e de regulação econômica. Por meio dela é possível reduzir a concentração de riquezas, que a atividade produtiva acaba muitas vezes ensejando. E se dissuade o consumo de bens e serviços que podem produzir danos aos indivíduos (tabaco e álcool, por exemplo), ou à sociedade (como automóveis, transações financeiras especulativas ou imóveis de luxo).
E qual o sentido político mais amplo desta nova concepção sobre o dinheiro? Ladislau enxerga a possibilidade de enfrentar a grande chaga social dos últimos 40 anos: a desigualdade. O mundo já gera bens e serviços suficientes para oferecer, a cada família de quatro pessoas, o equivalente a R$ 20 mil mensais. Mas os abismos na apropriação da renda e da riqueza estão devastando a coesão das sociedades e ameaçando as bases da própria democracia. Daniel pensa em Karl Marx. Uma das marcas do processo de alienação, descrito pelo filósofo, é o fato de os seres humanos não produzirem o que lhes é necessário – mas apenas o que pode ter valor monetário. Se a moeda for produzida e pensada coletivamente, e converter-se em instrumento para mobilizar as energias necessárias para autotransformação social, estaremos de algum modo superando os limites do capitalismo
Eis a transcrição do diálogo:
Antonio Martins: Olá pessoal, eu sou Antonio Martins, editor do site Outras Palavras. E nós estamos lançando hoje uma nova iniciativa, chama-se Resgate, é um projeto para discutir o país na nova situação política que está se formando agora, a partir de julho de 2021, e que deverá se estender até as eleições de 2022. Esse cenário é marcado e vai ser marcado, possivelmente, por turbulências.
Nós tivemos, ontem, a declaração do ministro da defesa dizendo impor limites para a CPI que investiga as falcatruas do governo Bolsonaro, em relação as vacinas. Nós tivemos hoje uma nova pesquisa, que mostra que está despencando de novo, continua a despencar a popularidade do Bolsonaro e, por meio do Resgate, nós queremos ir um pouco além da simples discussão da conjuntura.
Nós achamos que tem dois fenômenos de enorme importância, ocorrendo no Brasil. Um é a possibilidade real, que agora parece mais nítida, de derrotar o projeto fascista no Brasil. Há 6 meses isso parecia um pouco mais distante, parecia que a gente vivia um pesadelo interminável, mas agora, as manifestações de rua, a CPI demonstrando a falsidade do discurso anti-establishment, que foi o discurso em que o Bolsonaro tentou se apoiar, a queda de popularidade, tudo isso demonstra que essa luta pode dar resultado, o que não será pouca coisa, será uma grande coisa, nessa situação difícil que o mundo atravessa.
Mas o Resgate pretende dizer também que nós precisamos ir além da volta ao chamado velho normal. porque foi o velho normal que nos trouxe até aqui. Quando a gente fala em velho normal, fala de dois processos que se imbricam, um processo são os 500 anos de colonização, a desigualdade, os privilégios, a segregação social que vai assumindo, cada vez, novas formas. E outro processo, que monta em cima desse, é o processo dos 40 anos de neoliberalismo, porque justamente quando a sociedade brasileira, num processo que durou mais de uma década, começou a se enxergar, chegou à constituição de 1988, começou a assegurar alguns direitos, entrou o dogma que foi aceito, segundo a qual as sociedades e os Estados não podem definir medidas de futuro, têm que obedecer a uma disciplina fiscal rígida, ou então serão punidas gravemente.
Esse discurso marcou 40 anos, influiu inclusive nos primeiros governos de esquerda, e mais do que nunca, se tornou hegemônico depois do golpe de 2016, depois do Bolsonaro. Pois bem, a gente acha que essa possível vitória contra o bolsonarismo, tem que ser também a possibilidade de enxergar o que esses 5 séculos de colonialismo fizeram com o Brasil, e como o neoliberalismo aprofundou esse processo e existe uma brecha. É por isso que nós estamos aqui com dois economistas que lançam esse Resgate.
Muito prazer, Ladislau! Ladislau é um economista que atua, há décadas, na luta de reconstrução de países destruídos pela colonização, pela guerra. Foi consultor da ONU, em diversos países da América Latina, da África, consultor, justamente, para estimular processos de desenvolvimento. Mais recentemente, o Ladislau mergulhou de forma muito criativa e muito profunda no estudo da financeirização, dessa chamada nova etapa do capitalismo, e no que ela significa para as sociedades. Produziu um livro que nós tivemos a honra de ser coeditores, “A era do Capital Improdutivo”.
Nós temos também o Daniel Conceição. Daniel Conceição é um jovem economista, um economista que, como nós estávamos conversando aqui, trata da economia como uma ciência social, uma ciência política, uma ciência voltada para a garantia do bem-estar e das melhores condições de vida para todos. É um articulador de um fenômeno novo, talvez a economia, essa ciência que foi tão marcada por simplesmente reproduzir as injustiças, ela tem criado, mais recentemente, uma geração de jovens profissionais, mulheres e homens, muito contrárias a esse ponto de vista, ligadas à economia como uma ciência para assegurar a igualdade. O Daniel é um dos articuladores, aqui no Brasil, de uma ideia que é a Teoria Monetária Moderna, que ele vai explicar um pouquinho melhor aqui. É um dos criadores de uma nova organização que trata disso, que é o Instituto das Finanças Funcionais.
Bem, expliquei que o objetivo de trazer dois economistas é que talvez aí esteja um ponto fraco do neoliberalismo. Nos últimos meses, nos últimos anos, o Ladislau é um estudioso disso, a Ásia e a China, em particular, demonstraram como neoliberalismo podia ser vencido com grandes benefícios para as sociedades. Isso repercutiu mais fortemente no Brasil, nas últimas semanas, ou meses, talvez quando o John Biden lançou um conjunto de medidas, de pacotes de estímulo à economia, ao desenvolvimento tecnológico, à mudança da infraestrutura, ao socorro às famílias, aos estados, às empresas, e desafia a ideia da ortodoxia econômica.
Então, muito provavelmente, uma possibilidade de vencer essa ideia da submissão da sociedade aos mercados, a partir de um processo de retomada do investimento público, de combate à ideia de austeridade, à ideia de ajuste fiscal. Nós vamos estabelecer um diálogo com Ladislau e com o Daniel, exatamente sobre isso, na próxima hora.
Antes, como nós estamos começando esse ciclo do Resgate, a gente queria colocar uma saudação no ar, colocar no ar uma saudação, do Daniel Santini, que é parceiro desse projeto, é o diretor de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo, no Brasil, é um entusiasta do projeto do Resgate, ele mandou aqui, de três minutos, a gente vai colocá-la no ar e passar imediatamente à conversa com o Daniel e com o Ladislau. Vamos lá!
Daniel Santini: Começa agora a série Resgate, uma iniciativa do Outras Palavras. Meu nome é Daniel Santini, eu sou coordenador de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo, organização que está apoiando a série que tem início hoje. Agradeço imensamente o convite para participar da abertura, tenho muito entusiasmo e muita alegria em poder dizer umas palavras iniciais, e me toca até pessoalmente, participar desse evento, por acreditar muito nessa perspectiva que está sendo apresentada, hoje.
A gente tem como horizonte, na discussão nos próximos dias, nas próximas entrevistas, a análise nos próximos textos, de não só problemas, mas também soluções possíveis. A gente precisa disso, no Brasil, hoje, além de apresentar resistência, criticar o que tem que ser criticado, e isso é fundamental, a gente precisa ter um olhar para frente também, precisa ter esperança, a gente precisa pensar em como reconstruir o que foi perdido, nos últimos anos. A gente precisa disso pensando em várias dimensões. A gente precisa ter um olhar múltiplo, integrado.
Ao apresentar vários eixos de análise, procurar ouvir gente que trabalha, milita, estuda, muito tempo em cada um desses eixos, o Outras Palavras faz uma contribuição enorme para a construção de políticas públicas, para reflexão aprofundada sobre problemas e soluções possíveis, no nosso contexto atual. Gosto muito do fato de o Antônio Martins, ao estruturar o programa, não ter soluções prontas, não apresentar aí um manual ou ou algo assim, é muito mais um programa, uma série para se ouvir, se debater, se discutir, de verdade.
A gente tem problemas e a gente tem o espaço aberto para debater soluções. Nesse sentido, além de saudar todo mundo que vai participar, também enalteço a participação do público, que todo mundo que esteja assistindo tenha a chance de mandar uma mensagem, mandar sugestões, mandar encaminhamentos, acho que essa é uma das marcas do Outras Palavras, um público muito ativo e atuante e isso é muito legal também.
Eu agradeço o convite, mais uma vez. A Fundação Rosa Luxemburgo é uma organização alemã que atua em mais de 24 países, com iniciativas de cooperação, de busca de construção de um mundo mais justo e equilibrado, pensando tanto em termos sociais, quanto ambientais. A gente tem muita confiança no trabalho que vai ser feito, e deixa os votos de que esse projeto realmente contribua para que o Brasil avance na construção de políticas públicas e de soluções e utopias. A gente precisa de utopias! Se o cenário é de desesperança, de desilusão, de medo, se a gente tem sofrido muito, com todas as perdas, as mortes, é preciso lembrar de cada pessoa que partiu, seja por omissão, seja por falta de competência, seja por falta de cuidado com a vida. Se o cenário é esse, a gente não pode abaixar a cabeça e desistir! É um dever, é uma questão até ética, manter a esperança e procurar construir, procurar ter uma atitude de ajudar a transformar, seja oferecendo resistência, seja oferecendo, o que talvez seja mais difícil, caminhos e a possibilidade de construção de mudanças. Agradeço todo mundo que está assistindo, acompanhando e, de saída, deixo esses votos de um sucesso enorme para vocês, amigos e amigas, do Outras Palavras.
Antonio Martins: Muito obrigado ao Daniel! É sempre bom lembrar essas vítimas, nós estamos nos recuperando, muito penosamente, de uma situação de tragédia, nós estamos como no luto e na possibilidade de reconstrução, na necessidade de refletir, como os países que são derrotados em guerra. Nossa homenagem a essas pessoas que pereceram, sem necessidade, às pessoas que perderam seu familiares e amigos.
Eu acho que faria uma primeira pergunta a vocês. Ladislau e Daniel, o que é a crise do neoliberalismo fiscal e de que forma ela pode ajudar a construir um novo projeto de Brasil?
Daniel Conceição: Eu acho que o momento que a gente vive, ele deixa muito claro o esgotamento do sistema econômico e de gestão macroeconômica que se acreditava suficiente, se acreditava não, é que se vendia para as pessoas que seria suficiente para garantir o bom funcionamento dos nossos sistemas socioeconômicos. Então, você tinha o os comentaristas, com mais acesso à mídia dominante, por exemplo, quando falavam de economia, diziam que a receita para uma economia que funcione bem, para uma sociedade saudável, é um governo fiscalmente que garanta um ambiente de segurança fiscal, o que quer que isso signifique, para que as empresas possam realizar os seus investimentos, como se a empresa ficasse preocupada com o equilíbrio fiscal para investir mais, né?
Na cabeça dessas pessoas, era isso. E vendiam isso como se fosse a única verdade econômica para a nossa sociedade. E isso foi usado, a ideia de que os governos tinham que manter as suas dívidas sob controle, combater, quando houvesse ameaça de desequilíbrio fiscal, esses Estados deveriam combater esse desequilíbrio, normalmente cortando gastos, e aí viria também o efeito de diminuição da presença Estatal na economia que, para esses comentaristas, também era algo necessário, e que isso seria o suficiente para que a economia tivesse um desempenho razoável e suficiente para o bem-estar da sociedade.
E eles usaram isso durante muito tempo, pelo menos desde 2014, e essa é a visão que no Brasil foi apresentada como única e aceitável no debate. O governo brasileiro precisava controlar as suas contas para a economia funcionar bem, para isso precisa cortar gastos e, com isso, a gente foi convencido de que era necessário realizar reformas de toda a natureza. Foi uma reforma trabalhista, depois uma da previdência, para a gente resolver o suposto problema fiscal. Depois a gente foi pressionado, e continua sendo pressionado, a realizar uma reforma administrativa, também com esse objetivo. E a cada reforma desse tipo, a cada iniciativa desses governos que seguiam esse receituário, não só o o governo Bolsonaro, nem o Temer anteriormente, mas até segundo governo da Dilma, praticou esse tipo de receita, de dizer “não, o problema é fiscal, vamos resolver para tentar fazer economia voltar a crescer”. E isso nunca veio, a economia brasileira – importante que a gente ressalte – já estava em situação muito precária, a gente já tinha uma crise econômica, de desemprego elevado, de estagnação, antes da pandemia. Então a gente já tinha evidências fortes de que aquele modelo era insuficiente.
Agora o que acontece, com a pandemia, é que nós temos a combinação de uma crise sanitária monstruosa, que exige a presença do Estado oferecendo resposta à crise sanitária, é uma resposta material, é tratamento para as pessoas doentes, é renda para as pessoas que têm que praticar isolamento social e não podem receber as suas rendas desenvolvendo as suas atividades na rua e, eventualmente, trabalhar no sentido de uma cura, obter, desenvolver ou obter vacinas.
Então, a gente precisa de um Estado muito presente, gastando muito mais para combater a crise sanitária e as suas consequências econômicas recessivas, porque a crise sanitária trouxe consigo, também, uma crise depressiva muito grande, um choque depressivo, as pessoas não consomem tanto, porque estão em casa, se não consomem, não alimentam de consumo as empresas que vendiam para os consumidores, que agora também têm problema, essas empresas não têm como manter os seus empregados, porque não têm receita, os empregados não têm renda para continuar comprando.
Então você tem um choque depressivo muito forte, que só poderia ser resolvido com a presença forte do Estado oferecendo todo tipo de ajuda, como foi feito no mundo todo, inclusive no Brasil, apesar do governo Bolsonaro que não queria praticar o auxílio emergencial, mas foi pressionado a oferecer um auxílio, generoso no início, e depois começou a trabalhar com mesquinharias crescentes, para manter a população num nível de pobreza compatível com o que quer que seja o projeto de desmonte que eles têm na cabeça. Mas então, essa presença era inevitável, porque sem isso a gente teria o colapso completo das nossas sociedade, e repito, não era só o Brasil, é o mundo todo enfrentando o mesmo tipo de problema. E no mundo todo os Estados foram obrigados a parar com a mentira, porque até então – e a gente tem de novo um exemplo muito claro no Brasil – os Estados diziam, seus governos centrais afirmavam: “não temos dinheiro pra fazer o que o povo exige da gente!”. Essa era a desculpa no Brasil, essa desculpa era apresentada com toda a agressividade de quem se se afirmava dono da verdade. “Não tem dinheiro, o Brasil está quebrado! Acabou! Então a gente não pode, não só não pode oferecer bens e serviços públicos, que a população exige da gente, mas a gente tem que cortar o que já é insuficiente!”. Era esse o argumento: “então, a gente precisa de reformas redutoras do Estado na economia, porque a gente não tem mais dinheiro”.
Só que veio a pandemia, e que aconteceu? Os governos sabiam que sem um aumento dos gastos públicos, não iam segurar aquela crise e, no Brasil, a gente teve uma coisa muito emblemática que foi o Paulo Guedes – que era quem mais mentia que não tinha dinheiro – sendo obrigado a afirmar, em rede nacional, que iria, sim, gastar quanto fosse necessário para combater a pandemia, porque ele iria declarar um estado de calamidade. E depois negociou o orçamento de guerra para que as leis, que impediam o estado de gastar, fossem suspensas. E aí ficou clara uma coisa, nunca tinha sido falta de dinheiro para o Brasil, para o governo brasileiro gastar, assim como no mundo todo, onde os governos usam as suas moedas, nunca houve falta de dinheiro. O que havia no Brasil era falta de autorização legal, eram as leis que a gente, que os nossos legisladores inventaram, porque achavam que havia motivo para ter essas leis, associadas àquela ideia de que a responsabilidade fiscal é sempre bom, e responsabilidade fiscal significa gastar pouco e arrecadar muito. E essas leis impediam que o Brasil tivesse um gasto público do tamanho suficiente para a gente combater a pandemia.
Então, o Paulo Guedes foi obrigado a afirmar “bom, vamos suspender as leis, porque eu não posso gastar”, e quando ele gastou, ele gastou mesmo, né? O governo brasileiro praticou um déficit primário, que é a diferença entre gastos primários, gastos financeiros e arrecadação, na ordem de 700 bilhões de reais. Isso era inconcebível no passado! Para quem acreditava que faltava dinheiro para o governo gastar, 700 bilhões de reais, sem o governo ter nenhuma dificuldade de se financiar – porque depois a gente pode até entrar nesse assunto – mas o financiamento é feito do mesmo jeito, o governo cria moeda quando gasta e, depois disso, ele enxuga parte dessa moeda criada na forma de emissão de títulos, que foi o que aconteceu em 2020. O governo criou, a gente gastou o que tinha que gastar e as taxas de juros não explodiram, não houve nenhum problema, não teve inflação de demanda.
Então, no ponto que eu quero colocar é o seguinte, ficou óbvio, com a pandemia, que os economistas mentiam muito, pra gente, quando diziam que o Governo não podia gastar por falta de dinheiro e que, se gastasse sem dar atenção a esses limites fiscais, haveria uma hecatombe de inflação descontrolada, explosão dos juros das dívidas soberanas… Nada disso aconteceu! Eles são obrigados, agora, a reconhecer que estavam mentindo.
Antonio Martins: A gente volta já a esse discurso, e a como os Estados podem criar dinheiro, as várias modalidades de criar dinheiro e para quem se cria dinheiro. Mas, antes disso, o Ladislau.
Ladislau Dowbor: Olha, eu acho que o Daniel tocou no ponto chave, que é para onde vai o dinheiro, e não é de onde vem né, porque se eu pego um investimento, por exemplo, em saneamento básico real, cada real colocado em saneamento básico, você deixa de gastar quatro reais com problemas de doenças, né? Então, na realidade multiplicou dinheiro. Lembro de um projeto em Moçambique, de uma região muito produtiva em termos agrícolas, mas com péssimas infraestruturas de transporte, ou seja, a perda de produção foi para o gênero. O governo simplesmente abriu uma estrada, gastou os milhões de dólares necessários, mas o resultado, voltou muito mais alimento para a população, muito mais imposto para o governo e gerou mais receita do que o que se colocou.
Então, o dinheiro, as finanças, tem que ser visto como um investimento. Agora, no caso brasileiro, se você anotar o dinheiro, onde realmente é necessário, e que gera efeitos multiplicadores, que você use o endividamento, que use emissão de moeda, que use conversão de reservas cambiais, o essencial é o seguinte : o dinheiro retorna, tá? Esse é o eixo eu trabalhei. Trabalhei na China, trabalhei em muitos países, enfim… quer dizer, o essencial é sempre o seguinte, você orientar os recursos financeiros onde são efetivamente necessários.
Agora, a narrativa que venderam, para a gente, é uma farsa! É um discurso oportunista. Ele disseram “não, nós, ricos, temos que receber mais dinheiro porque nós, com mais dinheiro, a gente investe, isso gera emprego, isso gera prosperidade, né? Certo? E o dinheiro que vai para base da sociedade, o povo consome e pronto, né?”. Isso é uma farsa, porque o dinheiro que está indo lá para cima, vira fortunas financeiras que, no Brasil, não pagam imposto. Lucros e dividendos distribuídos, não paga, não pagou imposto, vai, em grande parte, para paraísos fiscais, entra na financeira e não está se transformando, efetivamente, em investimento. Eu tenho um empresário que escreveu para o Estadão, é um empresário efetivamente produtivo, ele diz: “olha, está realmente mais barato eu investir, sei lá… para que eu vou contratar se eu não tenho para quem vender?”. Então, o mesmo raciocínio que traz o Daniel, o dinheiro que vai para cima, na realidade esteriliza, enquanto o dinheiro que vai para a base da sociedade, ele gera a demanda. Essa demanda gera atividade empresarial mais intensa, não gera inflação, porque no Brasil as empresas estão trabalhando na faixa de 70% da sua capacidade, porque têm dificuldade de expor a produção. Você passa a escoar a produção, as empresas voltam a empregar, né? E tanto o consumo das famílias, que aumenta, como atividade empresarial que se intensifica, geram impostos, geram receitas, para o Estado. Tanto assim, eu fiz um documento, que as pessoas podem pegar lá no meu site, “Contas públicas, entenda a farsa”, não é complicado, qualquer um, em quatro páginas, você vai entender, você vai ver, que o déficit na fase distributiva, Lula, Dilma, era muito pequeno, e a partir de 2014 esse déficit, simplesmente, explode.
O essencial é pensar para onde vão os recursos? Os recursos tem que, no Brasil, melhorar a capacidade de consumo das famílias e tem que financiar as atividades produtivas. Isso vale pra qualquer sistema, China ou Vietnã ou Canadá, o que for, certo? Quer dizer, quando a empresa é produtiva, ela precisa ter gente com dinheiro, para ter a quem vender, e crédito barato para poder investir, financiar produção. No Brasil, não tem nem uma coisa nem outra. Então, isso paralisa. O The Economist, recentemente, ele traz que a economia brasileira está abaixo do nível de 2011, nós estamos em 2021, esse é o nível de paralisia que isso gerou.
Na realidade, o dinheiro está indo para grupos financeiros, tá? Eu uso muito os dados da Forbes, que são características, em plena pandemia você tem, de 18 de março de 2020 a 12 de julho, portanto em quatro meses, com a economia caindo, 42 bilionários no Brasil aumentaram suas fortunas em 180 bilhões de reais, 180 bilhões de reais, são 6 anos de Bolsa Família. Bolsa Família é para 50 milhões, tá? Aqui é para 42 pessoas, 6 anos de Bolsa Família em 4 meses, com a economia caindo, e não pagam impostos porque lucros e dividendos distribuídos não pagam imposto. Quer dizer, isso aqui é uma piada, você não tem economia que funcione assim!
Na economia internacional, eu pego … Ritelli, Ted…, extract capitalism, mas tem gente que chama de capitalismo extrativo. O Instituto Roosevelt faz estudo semelhante, ele calcula que esse enriquecimento dos grupos financeiros, que não produzem, só fazem intermediação financeira, especulação, eles calculam que apenas 10% do que eles captam no sistema de intermediação financeiro, juros, dividendos, etc, apenas 10% voltam pra economia real.
Eu faço os cálculos, nesse livro “A Era do Capital Improdutivo”, me dá a ordem de grandeza 18% de dreno financeiro sobre a economia produtiva. 18% do PIB, é o que se drena anualmente, esse sistema simplesmente se tornou disfuncional. Agora, chamar de austeridade e de responsabilidade, isso é uma piada, porque quando você extrai dinheiro do sistema produtivo, você está gerando austeridade para quem já é austero, que quer a massa da população, e você entope de dinheiro quem está entupido de dinheiro, que são os grupos mais mais ricos. Esse negócio simplesmente não funciona! Eu acho então, isso aqui que chamam de economia heterodoxa que, para mim, isso aqui é uma farsa né?
Deixa eu eu só fechar com esse mecanismo, que é básico. Tem o capitalismo que a gente tem que respeitar, o cara quer investir em produção de sapatos, ele gera emprego, ele compra máquinas, dinamiza atividades econômicas, o sapato que ele produz é bom, as pessoas vão poder usar, é gerar emprego, a gente chia que está explorando, mas está gerando emprego, está pagando imposto, o que permite a economia gerar.
Esse sistema financeirizado, porque esse é o núcleo do problema, esse sistema financeirizado, são grupos financeiros, é gente que não produz nada. Eu vejo essa essas fotos dos bilionários, no Brasil, os bilionários brasileiros adoram aparecer na capa da Forbes, é a glória, mas você conta nos dedos gente que produz alguma coisa, é um sistema extrativo e que deformou completamente o próprio capitalismo.
Por isso que, apesar dos avanços tecnológicos muito grandes, a economia mundial em geral, com exceção da China, de outros países que têm outra visão do uso dos recursos financeiros, está basicamente parada.
Antonio Martins: Mas pelo que você está falando, e o Daniel falou também, Ladislau, nós estamos – é tese do seu livro – nós estamos numa era em que esse mecanismo não funciona mais, o sistema não gera mais trabalho, não gera mais consumo, não se retroalimenta, porque existe um determinado setor que drena esse recurso todo. Então, num certo sentido caberia, não mais aos capitalistas tradicionais, mas à sociedade, por meio do Estado, fazer esse conjunto de investimentos que o sistema não faz mais. E não faz, não é só no Brasil, na Europa nós vivemos, nesses últimos 40 anos todos, o declínio do estado de bem-estar social, por exemplo. Então, o que eu perguntaria para vocês é, considerando que o sistema capitalista realmente existente, digamos assim, que o capitalismo realmente existente não investe mais no consumo das pessoas, não investe mais na geração de trabalho das pessoas, ele drena todos os recursos para uma pequena minoria, porque se chama de 0,1%, que enriquece enquanto o conjunto da população empobrece – os dados que o Ladislau deu são são muito eloquentes – isso significa que cabe à sociedade.
Por meio de que mecanismos realizar esse conjunto de investimentos, por exemplo, assegurar que o brasileiro tenha saneamento, assegurar que as nossas as cidades não sejam dirigidas pelos especuladores imobiliários, assegurar que haja ferrovias, de novo, no Brasil, assegurar que a gente tenha energia solar e não esteja submetido ao apagão de novo, ao tarifaço? O que isso significa de mudança estrutural no sistema? Isso que você está falando é muito grave!
Ladislau Dowbo