Tanto na atenção primária quanto na hospitalar não há evidências que corroborem o discurso de que o sistema privado é mais eficiente do que o público
A iniciativa da Presidência da República de propor a realização de estudos, pelo Ministério da Economia, de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, modernização e operação de unidades básicas de saúde provocou reação e fez o governo voltar atrás. Contudo, meses após a controvérsia, no final de abril, o tema voltou à tona quando o ministro da Economia argumentou que o setor público não daria conta e que o privado era a solução.
A concepção subjacente ao discurso do ministro de que a gestão privada é mais eficiente e eficaz do que a gestão estatal não é recente. Já em 1989, o Banco Mundial publicou documento no qual defendia que os pobres teriam acesso a um melhor atendimento se o setor público contratasse serviços das empresas de planos de saúde, conforme contam Bahia e Scheffer (2018).
Ao longo do tempo, esta concepção inspirou iniciativas que aumentaram a participação do privado no SUS, tal como a transferência da gestão de estabelecimentos públicos para as OSS (organizações sociais de saúde). Não há evidências, todavia, de que a gestão privada tem melhores resultados do que a estatal, conforme nota técnica do IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde). Não há avaliações comparativas das parcerias público-privadas no setor de saúde e, no caso da administração de estabelecimentos pelas OSS, embora as evidências indiquem haver aumento de produção, não há estudo que investigue os efeitos na saúde da população atendida.
Na ausência de evidências, os gestores devem avaliar as possibilidades de arranjos público/privado sem partir de premissas que possam prejudicar os resultados das políticas públicas. Considere-se, por exemplo, os dois casos recentes e o tipo de atenção de que tratam: a assistência primária, foco do decreto da Presidência da República e, a assistência hospitalar, abordada pelo ministro da Economia.
Unidades básicas de saúde, conforme a Pnab (Política Nacional de Atenção Básica), deveriam estar localizadas perto de onde as pessoas moram, trabalham ou estudam e presentes, portanto, na maior parte dos municípios brasileiros. Apesar dos esforços já feitos, em dezembro de 2020, 76,08% da população brasileira era coberta por assistência básica e 63,62% pela estratégia da saúde da família, conforme o painel de indicadores de atenção primária à saúde da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde.
É preciso cautela para que preconceitos que carecem de evidências não orientem a implementação de políticas
A principal dificuldade de muitos municípios do interior é suplantar a escassez de recursos humanos. Uma equipe de estratégia de saúde na família, na qual se baseia o processo atual de expansão, qualificação e consolidação da atenção básica, deve ter em sua composição ao menos um médico. Como a distribuição geográfica desses profissionais é muito desigual, é preciso levar profissionais de saúde ao interior para que as unidades básicas de saúde sejam implementadas com sucesso.
No entanto, os principais fatores a influenciar as decisões de médicos sobre o local para atuar e morar são estar perto de onde nasceram ou se graduaram, como mostram Costa, Nunes e Sanches (2019). A estrutura de saúde do local e os salários os mobilizam, mas não são os principais fatores de decisão. Corrobora esse estudo o fato de que, apesar dos incentivos do Programa Mais Médicos, 76% dos profissionais deslocados no primeiro ano do programa (2013) para atender a demanda da região Nordeste, que apresentou o maior número de municípios onde 20% ou mais da população vivia em extrema pobreza, eram cubanos.
A maior liberdade na forma de contratar recursos humanos facilita a criação de benefícios inovadores pela iniciativa privada. Parece-nos improvável, todavia, que benefícios suficientemente atrativos possam ser desenvolvidos rapidamente sem que incluam vantagens pecuniárias. E, para o pagamento destas, seria preciso considerar as restrições do setor público, do qual viriam, ao final, os recursos.
Já a assistência hospitalar é um exemplo notório da participação do privado no sistema público. Leitos em hospitais filantrópicos, entre os quais se destacam as santas casas, representavam 37% dos leitos destinados a pacientes do SUS, em fevereiro de 2021, conforme dados do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde). Mais ainda, 7% dos leitos destinados a pacientes do SUS eram providos por hospitais privados com fins lucrativos (fevereiro/2021 – CNES). Apesar disso, ainda persistem as filas para atendimento hospitalar financiado pelo SUS.
Em que pese problemas de gestão, as principais restrições são orçamentárias. Considerando-se o total de despesas hospitalares pago por operadoras de planos de saúde em 2019 (R$ 51,5 bilhões), o total de beneficiários de planos de assistência médica em 2019 (47.071.904), o total despendido pelo SUS com gastos hospitalares em 2019 (R$ 12,6 bilhões) e a população estimada (209.259.473) pelo IBGE para julho de 2019 – descontado o total de beneficiários em dezembro de 2019 (162.187.569) –, os gastos médios per capita com o atendimento hospitalar de beneficiários de planos de saúde foi de R$ 1.096,04, enquanto o do sistema público com a população que não tem plano de saúde foi de R$ 77,75. A disparidade do nível de gastos hospitalares médios per capita torna mais provável que, se houver restrições de atendimento, elas ocorram no setor público. Torna, ainda, muito difícil comparar a eficiência do sistema público com o sistema suplementar.
Como mostram esses exemplos, não é evidente que o mero aumento da participação do setor privado no provimento de serviços financiados pelo SUS melhoraria a qualidade dos serviços públicos, diminuiria as filas de atendimento ou aumentaria a eficiência da utilização dos recursos. Buscar soluções que aumentem a eficiência e eficácia das políticas públicas é dever dos servidores públicos. Estudar alternativas para problemas já diagnosticados é o que se espera de quem tem o dever e o poder de formular políticas de Estado. É preciso, contudo, cautela para que preconceitos que carecem de evidências não orientem a implementação de políticas.
Tatiana Lima é especialista em políticas públicas e gestão governamental, em exercício no Conselho Administrativo de Defesa Econômica. É doutora em teoria econômica pela USP, com interesse em organização industrial (antitruste e regulação) e no setor de saúde.