A oitava Plenária da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos teve resultados conservadores. E o Brasil tem parte nisso
Anualmente, 137 países se reúnem para acompanhar o plano de trabalho da plataforma da ONU que elabora relatórios sobre o estado de conhecimento sobre biodiversidade e serviços ecossistêmicos, a IPBES (Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos). Estes relatórios visam inspirar políticas públicas locais e também outras convenções da ONU, como por exemplo, a Convenção da Diversidade Biológica. Desta forma, busca-se estimular a elaboração de políticas embasadas na ciência.
A IPBES, existe desde de 2012 e está em sua oitava reunião anual. Apenas em 2020, em razão da pandemia, não houve plenária. Neste ano, a reunião aconteceu de 14 a 24 de junho e foi a primeira agência da ONU a realizar de forma integralmente virtual uma plenária com a tomada de decisões. A pauta incluiu, além de temas ordinários como programa de trabalho e orçamento, a aprovação do escopo dos seguintes relatórios: relatório temático das mudanças transformadoras necessárias para atingir, em 2050, a vida em equilíbrio com a natureza (Transformative Change Assessment), e relatório temático para uma avaliação das interligações entre a biodiversidade, água, alimentação e saúde (Nexus Assessment). Além disso, deu-se continuidade ao trabalho relacionado com as interligações entre biodiversidade e mudança climática em colaboração com o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).
Assim como nas demais agências da ONU, as aprovações na IPBES devem ser consensuais entre os Estados-membros. O que aparentemente parecia ser uma pauta de rotina transformou-se num palco de polarizações, inclusive protagonizadas pelas posições do nosso país, quando o assunto tratava de clima e biodiversidade.
Já há algum tempo se discute que, as relações entre clima e biodiversidade se retroalimentam, portanto, estas questões deveriam ser tratadas em conjunto. Esta abordagem integrativa afetava diretamente os escopos dos relatórios temáticos de mudanças transformativas e das interligações entre biodiversidade, água, alimentação e saúde. Ademais todo o trabalho futuro da IPBES, precisa levar em conta os impactos das mudanças climáticas, pois até 2050 este será o principal vetor de perda de biodiversidade. Estas interações estão amplamente exploradas e documentadas no workshop virtual conjunto IPBES e IPCC, realizado em dezembro de 2020, cujo sumário foi publicado às vésperas do início da oitava Plenária.
Já há algum tempo se discute que, as relações entre clima e biodiversidade se retroalimentam, portanto, estas questões deveriam ser tratadas em conjunto
As mudanças climáticas agravam e aceleram os riscos à biodiversidade e aos habitats naturais ou manejados. O que ainda não é tão conhecido são os impactos positivos da biodiversidade na redução da velocidade de acumulação de gases de efeito estufa na atmosfera, mitigando o aquecimento global. Certamente o processo positivo melhor conhecido da conservação da biodiversidade e habitats nas mudanças climáticas é a alta capacidade de remoção de CO2 da atmosfera e estoque de carbono, especialmente em sistemas como as florestas tropicais, o cerrado, as planícies alagáveis e os manguezais.
A restauração da vegetação nativa parece ser uma frente promissora para simultaneamente mitigar os efeitos dos gases do efeito estufa e preservar a biodiversidade. No caso do Brasil, por exemplo, a restauração de áreas de preservação permanente e de reservas legal, obrigatórias pela Lei de Proteção à Vegetação Nativa, teria um alto impacto mitigador sequestrando gigatons de CO2 da atmosfera e contribuindo significativamente para conter o aumento de temperatura dentro dos limites previstos pelo Acordo de Paris. Cabe destacar que estas são florestas permanentes, predominantemente com espécies arbóreas nativas, portanto, não se enquadram aqui as monoculturas florestais visando a produção de celulose, que são periodicamente cortadas.
O Brasil nestes fóruns internacionais tem reiteradamente entendido que, como há uma Convenção sobre a Diversidade Biológica (CBD) e outra sobre Mudanças Climáticas (UNFCC), essas temáticas devem ser discutidas de forma isolada. Despreza-se então, qualquer sinergia entre as crises da biodiversidade e do clima. A própria estrutura do Itamaraty deflagra esta abordagem isolacionista. Há equipes distintas para cada uma das negociações, ainda que ambas estejam no Departamento de Meio Ambiente (vinculado à Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania), desde 2019, quando o Itamaraty desmobilizou a frente diplomática que usava a preservação ambiental como trunfo para atrair recursos e influenciar decisões em fóruns econômicos internacionais.
Outra questão que exigiu horas de negociação sob a alegação de que não há uma definição clara e oficial foi o uso da expressão “soluções baseadas na natureza”. Esse conceito já é largamente utilizado na literatura científica e as soluções baseadas na natureza vêm sendo vistas como a panaceia dos problemas ambientais do planeta. Obviamente estas soluções não são esta panaceia, mas são extremamente úteis em algumas áreas. Um bom exemplo, de fácil compreensão, é a regeneração natural de florestas. Regiões onde florestas foram derrubadas, mas sobrou uma vegetação secundária (popularmente denominada capoeira) o melhor método de restauração é deixar a natureza seguir seu curso, pois naturalmente a floresta vai se regenerar sem custo, desde que a perturbação cesse.
Como consequência desta posição intransigente do Brasil, perdemos a oportunidade de implementar mitigações ganha-ganha, como é o caso da restauração florestal. Foi dificílimo se chegar a uma linguagem consensual no escopo dos dois novos relatórios temáticos que abarcavam a integração da agenda de biodiversidade e clima, consequentemente estes escopos, aprovados depois de horas de negociação, são extremamente conservadores no que tange às interações biodiversidade e mudanças climáticas. A esperança é que os especialistas que vierem a serem selecionados para estes dois relatórios explorem ao máximo as aberturas que restaram no escopo sobre essas interações.
Se considerarmos a oitava Plenária da IPBES uma prévia de como serão as negociações da COP15 (15ª Convenção das Partes) da Biodiversidade, prevista para outubro em Kunming (China), dificilmente teremos os grandes avanços conceituais necessários para de fato estabelecermos o início das mudanças transformativas fundamentais para chegarmos a 2050 vivendo em harmonia com a natureza.
Carlos Alfredo Joly é graduado em ciências biológicas na USP (Universidade de São Paulo), obteve seu mestrado na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e seu doutorado na Universidade St. Andrews, na Escócia. Atualmente é membro titular da Academia Brasileira de Ciências, coordenador do Programa BIOTA/FAPESP, da BPBES (Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos) e professor titular em ecologia vegetal do Departamento de Biologia Vegetal da Unicamp.