Luiz Carlos Bresser-Pereira
Resumo: A tese que a democracia está morrendo aos poucos aplica-se a países como a
Hungria, a Polônia e a Turquia; não aos países ricos cuja democracia está consolidada
por razões estruturais e pelos interesses envolvidos. A democracia foi uma conquista
do povo que incomoda as elites, mas nem elas nem o povo querem substituí-la por um
regime autoritário. Essa tese desvia a atenção do verdadeiro problema dos países
desenvolvidos enfrentam que é o fracasso do neoliberalismo e da teoria econômica
neoclássica que o justifica. É esse fracasso, o aumento dos exilados políticos e dos
imigrantes, e a perplexidade do mundo rico diante do desenvolvimentismo da China
que estão dando origem ao populismo de direita e a um mal-estar generalizado no
Ocidente.
Palavras-chave: democracia, neoliberalismo, populismo, povo, elites, Ocidente
Abstract: The thesis that democracy is slowly dying applies to countries like Hungary,
Poland and Turkey; not to rich countries whose democracy is consolidated for structural
reasons and for the interests involved. Democracy was a conquest of the people that
bothers the elites, but neither they nor the people want to replace it with an authoritarian
regime. This thesis diverts attention from the real problem that developed countries
face, which is the failure of neoliberalism and the neoclassical economics that justifies
it. It is this failure, the increase in political exiles and immigrants, and the perplexity of
the wealthy world at China's developmentalism that are giving rise to right-wing
populism and widespread malaise in the West.
Key words: Democracy, neoliberalism, populism, people, elites, West
JEL classification: P51
Afinal Donald Trump não deverá ser reeleito, mas mesmo que o seja parece-me necessário
criticar a tese da morte gradual da democracia em países desenvolvidos, porque nesses países
a democracia foi uma conquista popular que as elites econômicas aceitaram há cerca de um
século; são democracias consolidadas. Nesses países e também em países de renda média como
o Brasil, que já completaram sua revolução capitalista e já têm uma experiência de democracia,
a regra do jogo é a democracia. Populistas de direita como Trump e Bolsonaro a ameaçam, mas
a probabilidade de que eles se perpetuem no poder de forma autoritária é mínima. Essa tese é
aplicável a países como a Hungria, a Polônia e a Turquia, onde as eleições são mantidas, mas
os direitos civis e o processo eleitoral vêm sendo minados por governantes autoritários. Mas é
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uma tese equivocada, que desvia a atenção do problema principal que as democracias
consolidadas enfrentam – a forma neoliberal de organização econômica do capitalismo. Eu
compreendo a inconformidade e a perplexidade de muitos americanos com a eleição de uma
pessoa tão incapaz, violenta e má, porque eu também não me conformo com a eleição em meu
país de político ainda mais inaceitável sob um ponto de vista civilizado, mas isto não justifica
que confundamos a “democracia liberal” com o capitalismo neoliberal, que tomemos a parte
pelo todo. Apenas países em profunda crise podem eleger pessoas como Trump e Bolsonaro,
mas meu argumento é que essa crise não é principalmente política mas econômica e social. A
crise que hoje nos rodeia não acontece porque as instituições políticas democráticas falharam,
mas porque as instituições econômicas, sociais e políticas como um todo, a organização social
que estou denominando capitalismo neoliberal financeiro-rentista fracassou em produzir
riqueza, estabilidade, segurança e proteção da natureza. Um fracasso que está tendo
consequências deletérias no plano político. Não foi a democracia que fracassou, mas a forma
neoliberal que o capitalismo assumiu desde 1980 e que hoje enfrenta uma crise terminal.
A democracia certamente enfrenta problemas em países nos quais ela já está consolidada,
principalmente nos Estados Unidos, onde ela vem se deteriorando desde os anos 1980, e no
Brasil, onde essa deterioração é mais recente mas foi grande. 1 Quando a qualidade de uma
democracia diminui, ela se torna mais facilmente alvo de grupos minoritários neofascistas e
populistas de direita, mas não é difícil ver a resistência de americanos e brasileiros frente ao
autoritarismo de seus governantes. No capitalismo neoliberal não ocorrem fatos históricos
novos que possam ter levado tanto as classes populares quanto as elites econômicas a preferir
um regime autoritário. O fato histórico novo já tem 40 anos: foi a mudança do capitalismo
social-democrático e desenvolvimentista para o capitalismo neoliberal; foi a emergência desta
forma histórica de capitalismo que não é simplesmente conservadora mas é agressiva,
desestabilizadora e desestruturante, que vem deixando os cidadãos insatisfeitos, inseguros e
ansiosos.
O capitalismo implicou a construção de suas duas instituições básicas – o Estado moderno
e o mercado –, este constituído pelos mercados nacionais e o mercado mundial. Uma
construção difícil, sujeita a crises periódicas mas relativamente exitosa porque implicou
diminuição da desigualdade, maior estabilidade econômica, e uma taxa de crescimento
razoável. Nos anos 1970, porém, surgiram problemas novos– principalmente a concorrência
dos países em desenvolvimento que passaram a exportar bens manufaturados – que exigiam
mudanças e adaptações. Ao invés disso, porém, o que vimos foi uma regressão; foi a
substituição de uma coalizão de classes fordista, que a Escola da Regulação estudou tão bem,
por uma coalizão de classes estreita, financeiro-rentista e neoliberal, que adotou como projeto
a redução dos salários diretos e indiretos dos trabalhadores.
Na tese do desaparecimento gradual da democracia uma coisa é verdadeira: há um
crescimento do populismo de direita não apenas em países ricos mas também em países de
renda média, como a Turquia, a Hungria e a Polônia, onde esse espírito antidemocrático pode
ser mortal para a democracia. Mas, por que surge esse populismo? Não é da própria
democracia, mas da forma perversa e ineficiente de capitalismo que as elites econômicas
liberais impuseram a seus próprios países, e aos demais países dependentes. A simples
denúncia do populismo não leva a nada; já compreendê-lo como consequência do fracasso do
neoliberalismo pode ser esclarecedor. Fracasso em melhorar o padrão de vida e dar mais
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segurança para toda a população. Fracasso de um capitalismo “reformista” cujas reformas são
a contrarreforma do Estado do bem-estar social. Fracasso de uma forma de organização
econômica do capitalismo associada a alta instabilidade financeira, baixo crescimento e brutal
aumento da desigualdade econômica. Forma de organização econômica do capitalismo – o
liberalismo econômico – para a qual existe alternativa, no plano econômico, do
desenvolvimentismo e, no plano político, da socialdemocracia; a alternativa dea uma
intervenção moderada mas estratégica do Estado na economia, uma perspectiva nacional antiimperialista,
uma política social-democrática visando a redução da desigualdade, e uma
política ambiental visando a proteção da natureza.
Tornou-se usual entre cientistas políticos influentes do mundo anglo-saxão a crença que
embora não exista espaço para golpes de Estado, a democracia liberal nos países ricos está
sofrendo um processo de erosão gradual, está em um processo de backsliding que levará afinal
à sua morte. Para fundamentar essa tese olham para o resto do mundo, vêm outros líderes
populistas de direita que chegaram ao poder através de eleições e, em seguida, passarem a
minar o regime democrático. Não consideram que são países em estágio de desenvolvimento
muito mais atrasados do que os países avançados, e concluem que essa é a nova forma de as
democracias, até há pouco consideradas consolidadas, sofrerem um processo de erosão e
terminarem. Nessa narrativa temos um inimigo e uma vítima: o inimigo é o populismo – são
os líderes populistas de direita e instituições políticas ainda não suficientemente bem
desenhadas –, a vítima, a democracia liberal. Qual a razão para esse populismo de direita que
não está apenas nos Estados Unidos, mas também na Europa? Meu entendimento é de que se
trata de uma reação, de um backlash frente a “virada neoliberal’ que levou à substituição da
Era de Ouro pelos Anos Neoliberais do capitalismo. Os defensores da tese do fim da
democracia ignoram o neoliberalismo e a virada neoliberal, buscam uma explicação políticoinstitucional
que não se sustenta, e supõem que algumas reformas políticas e menos
“austeridade” nas políticas econômicas resolverão o mal-estar que tomou conta do Ocidente.
Eles têm dificuldade em considerar a organização social maior, o capitalismo, como uma
realidade histórica que engloba o regime político, e só veem a democracia liberal que, assim,
deixa de ser aquilo que ela é para ser a forma de organização do próprio capitalismo.
Historicamente a democracia liberal foi a primeira forma de democracia moderna que se
materializou na virada do século XIX para o XX, quando aos direitos civis foi adicionado o
direito político de votar e ser votado – o sufrágio universal. Não havia ainda o atendimento dos
direitos sociais e formas mais elaboradas de responsabilização social e participação política
que hoje podemos ver nas democracias europeias mais avançadas. Surgiu no quadro de um
capitalismo de empresários industriais que, naquele momento histórico – a Segunda Revolução
Industrial e o surgimento das grandes corporações privadas –, estava se transformando em um
capitalismo também de gerentes ou tecnoburocratas. Surgiu como uma democracia liberal,
defendida pelos ideólogos liberais, que procurava limitar ao máximo o poder dos eleitores.
Depois disso não ocorreu qualquer fato histórico novo que justifique o possível fracasso desse
regime político. Já o mesmo não pode ser dito do neoliberalismo – uma fase reacionária e
autoritária do capitalismo que representou um retrocesso maior em relação à Era Dourada
ocorrida no após-guerra. Não é, portanto, a democracia mas o capitalismo que está em crise.
Não há por que falar em fim da democracia porque, não obstante suas limitações, ela foi uma
conquista da humanidade,2 mas se pode falar em crise terminal do neoliberalismo porque foi a
segunda vez que o liberalismo econômico comprovou sua incapacidade de organizar o
capitalismo; a primeira foi em 1929, a segunda, em 2008.
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O problema central que enfrenta o Ocidente é definir uma nova forma histórica de
capitalismo baseado em uma teoria econômica renovada, como Keynes o fez nos anos 1930, e
em uma filosofia política democrática, social e ambiental. O aspecto político da crise do
neoliberalismo foi salientado por dois fatos ocorridos em 2016 – a eleição de Donald Trump
nos Estados Unidos e o referendo do Brexit no Reino Unido – mas o que está em jogo não é o
fim da democracia e, sim, a superação do neoliberalismo que, não por pura coincidência,
tornou-se primeiramente dominante nesses dois países com a eleição de Margaret Thatcher e
Ronald Reagan. Superação não por um populismo de direita, mas por um desenvolvimentismo
democrático e social.
Consolidação da democracia
Ao fazer tal afirmação eu parto de dois pressupostos. Primeiro, de um pressuposto muito
geral – a de que o capitalismo é uma forma de organização social que se desenvolve através de
fases, cada fase correspondendo a uma formação social especial. Foi o que todos os cientistas
sociais aprenderam com Marx e com muitos outros pensadores que pensaram o capitalismo
historicamente. Há muitas maneiras de ver essas fases, que são mais compreensíveis se as
referimos a três países – o Reino Unido, a França e a Bélgica – que passaram por todas elas.
Uma periodização que eu tenho usado e me parece esclarecedora. Vê, primeiro, dos séculos
XVI ao XVIII, um capitalismo dos mercadores no quadro econômico do mercantilismo;
segundo, no século XIX, um capitalismo dos empresários industriais, no quadro liberalismo
econômico; terceiro, no século XX, um capitalismo dos gerentes, no quadro do capitalismo
tecnoburocrático ou monopolista; e, finalmente, desde 1980, um capitalismo financeirorentista
no quadro do neoliberalismo. No plano político, as duas primeiras fases foram
autoritárias, a primeira porque não garantia nem o Estado de direito, nem o sufrágio universal,
a segunda, porque não garantia o sufrágio universal; as duas últimas são democráticas; são
caracterizadas pela democracia representativa ou, como é mais chamada, democracia liberal –
uma expressão que é contraditória porque é preciso não esquecer que, durante todo o século
XIX, os liberais rejeitaram a democracia com o argumento que ela implicava a “ditadura da
maioria”. O que está em discussão na presente crise não é essa democracia mas o capitalismo
neoliberal. Falar na erosão da democracia sem falar no neoliberalismo é desviar a atenção do
que é mais importante. A democracia progrediu nos países ricos, alcançou um pico no apósguerra,
na Era Dourada do capitalismo, e depois, à medida em que avançava o neoliberalismo,
a democracia perdeu vigor. Colin Crouch, escrevendo em 2004, afirmou que ela se transformou
em uma “pós-democracia” na medida em que continuaram a haver eleições, “mas a massa dos
cidadãos representa um papel passivo, quiescente, patético”.3 Seria, no entanto, melhor dizer
que se transformou em uma “democracia liberal propriamente dita” – em uma democracia
neoliberal semelhante à primeira democracia, schumpeteriana, do início do século XX.4 Uma
democracia de baixa qualidade em uma forma de capitalismo regressiva; uma democracia
consolidada porque representa um compromisso entre os cidadãos e as elites – os cidadãos,
com expectativas rebaixadas, as elites burguesas e tecnoburocráticas, satisfeitas porque
continuam a se apropriar do excedente econômico apenas apoiadas no mercado e na sua
hegemonia ideológica, mas preocupadas porque esse excedente cresce muito lentamente e a
insatisfação dos cidadãos com elas e os políticos que as representam é crescente.
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O segundo pressuposto diz respeito ao problema da consolidação das democracias – um
tema que concentrou a atenção dos cientistas políticos após a terceira onda de democratizações
a partir de meados dos anos 1970.5 Linz e Stepan afirmam que “por ‘democracia consolidada’
nós entendemos um regime político no qual a democracia, como um sistema complexo de
instituições, regras e padrões de incentivos e desincentivos, se tornaram, numa frase, ‘the only
game in town’”.6 Muitas novas democracias, como a espanhola ou a brasileira nasceram
consolidadas, enquanto outras aconteceram em países subdesenvolvidos, que não haviam ainda
realizado sua revolução industrial e capitalista. Nesses casos, nos quais a democracia foi
geralmente instalada por pressão externa, ela se mantém instável. Em um trabalho sempre
citado, Seymour Lipset (1959) mostrou que existe uma forte correlação entre o nível de
desenvolvimento econômico de um país e o fato de ser democrático ou não. Depois muitos
estudos confirmaram esse achado, mas como observaram Rueschemeyer, Huber e Stephens,
em um excelente livro, em uma grande survey da literatura sobre a relação entre o
desenvolvimento econômico e a democracia, Capitalist Development & Democracy (1992),
não havia uma explicação satisfatória para o problema que continuava uma “caixa preta”.
Na primeira versão de meu paper “Transição, consolidação democrática e revolução
capitalista”, de 2002 mas só publicado em 2011, eu creio que encontrei uma explicação
estrutural para a consolidação democrática. Minha questão foi: por que a democracia só passou
a ser o regime político preferido e consolidado no século XX? E a resposta histórico-estrutural
que encontrei foi que a democracia era impossível nos modos de produção anteriores ao
capitalismo nos quais a apropriação do excedente econômico pela classe dominante era
realizada através do controle direto do Estado. Com a formação do estado-nação e a revolução
industrial, que aconteceu inicialmente no Reino Unido no início do século XIX, completandose
assim a “revolução capitalista”, a apropriação do excedente econômico pôde ser realizada
no mercado, através da troca de valores “equivalentes”, o que permitiu que a burguesia
realizasse lucros independentemente do Estado. Bastava agora que o Estado garantisse a
propriedade e os contratos. A burguesia, porém, que apoiava a garantia dos direitos civis ou o
Estado de direito, continuava a vetar a democracia porque temia o sufrágio universal (o
segundo elemento do conceito mínimo de democracia) por que levaria à eleição de partidos
socialistas que a expropriassem. Entretanto, dado que os partidos socialistas quando chegavam
ao poder não implantava o socialismo, a burguesia tinha o controle da mídia, e podia financiar
e tornar dependentes os políticos, e desde que uma série de dispositivos constitucionais
limitassem o poder dos parlamentos e do poder executivo, a burguesia e os ideólogos liberais
foram perdendo o medo, o medo do sufrágio universal, suspendeu o veto à democracia, e a
transição democrática se completou. A classe capitalista foi assim a primeira classe social
dominante a levantar seu veto à democracia porque foi a primeira a não depender da violência
do Estado para se tornar e se manter rica. E surgiu, então um segundo argumento para a classe
capitalista apoiar a democracia. Diferentemente das classes dominantes anteriores, que eram
pouco mais do que uma oligarquia, ela é uma classe social muito grande que precisa de
mecanismos institucionais para seus membros buscarem poder político. A democracia revelou
ser esse mecanismo institucional e vimos, em muitos países, um partido liberal e um partido
conservador, ambos rigorosamente burgueses, se alternavam no poder.
A história política dos países mais avançados mostra a solidez da democracia nos países
que já completaram sua revolução capitalista. Países que não atendem a essa condição podem
se tornar democráticos em decorrência da pressão de países mais poderosos ou por imitação
6
institucional. Mas a democracia nesses países é sempre instável. No caso dos países ricos,
porém, a democracia se mostra capaz a sobreviver não obstante crises de vários tipos. A
exceção sempre lembrada seria a da Alemanha de Hitler, mas essa não é uma verdadeira
exceção porque a primeira experiência de democracia na Alemanha, a República de Weimar,
foi antes uma experiência de crise permanente em um quadro de ressentimento pela derrota na
guerra. Além do fato óbvio de que em nenhum país desenvolvido que se tornou democrático a
democracia morreu, temos a comprovação empírica da tese da consolidação estrutural da
democracia na grande pesquisa que Adam Przeworski e associados realizaram no livro,
Democracy and Development.7 Nessa pesquisa sobre a democracia, que envolveu o estudo das
mudanças de regime político de 141 países no período 1950-1990, seus autores concluíram que
depois que a democracia passou a caracterizar um país desenvolvido ela perdurará por tempo
indefinido. Ou, como ouvi Przeworski dizer mais de uma vez em conferências, “quando um
país já é democrático e tinha uma renda per capita superior a US$ 6.000 em 1990, a
probabilidade que ele volte a ser autoritário é zero”. Ora, um país com essa renda por habitante,
que a preços de hoje, considerada a inflação nos Estados Unidos, corresponde a US$ 12.220,
certamente já terá completado sua revolução capitalista e sua democracia está, portanto,
consolidada, a não ser que seja um país exportador de petróleo ou de diamantes. Em um
trabalho mais recente, Przeworski encontra novo dado que confirma essa tese. Estudando os
regimes políticos até 2014, concluiu que a renda per capita média dos países cuja democracia
sobreviveu antes de 2008 foi US$ 18,012, enquanto naqueles países em que a democracia
entrou em colapso essa média foi de apenas US$ 5,770.8
Uma outra forma de considerar a consolidação da democracia nos países ricos é usando o
método de análise histórica da democracia desenvolvida por Charles Tilly no livro de 2007,
Democracy. Nesse livro esse notável sociólogo e cientista político define democracia não em
termos discretos como a maioria dos cientistas políticos faz, mas em termos de gradação. “Um
regime é democrático na medida em que as relações entre o Estado e os cidadãos apresentam
consulta igual, protegida e mutuamente obrigatória.” (58) Quando há democratização, essa
consulta aumenta e se torna mais obrigatória, o inverso ocorrendo na desdemocratização. O
processo de democratização envolve mudanças em três áreas: nas relações de confiança, no
caráter categórico da desigualdade e nos centros autônomos de poder. As redes de confiança
entre os cidadãos envolvem um grande e ramificado número de relações interpessoais através
das quais eles definem valores, seus recursos, a experiência de êxitos ou fracassos. A
desigualdade categórica é definida pelas fronteiras estabelecidas entre grandes grupos de
pessoas que têm oportunidades de vida muito diferentes devido a gênero, raça, etnia,
nacionalidade e religião. Os processos de equalização dependem diretamente da diminuição
dessa diferença categórica. Finalmente, os centros autônomos de poder existentes fora do
Estado incluem as relações interpessoais e envolvem defesa ou alteração da distribuição de
recursos. Nessas três áreas os processos e as mudanças ocorrem de forma lenta e não-linear.
Dialética, eu diria. Não é de um dia para o outro que as redes de confiança se estabelecem, as
diferenças categóricas são amainadas, e a influência dos centros autônomos é razoavelmente
tornada transparente e limitada. Para desenvolver esses conceitos Tilly estudou longamente a
história da democracia e, principalmente, da França e da “incrível” Suíça. E concluiu que os
processos de democratização, ao qual ele dá muito mais atenção do que ao processo de
desdemocratização, são processos de longa duração. Existe a possibilidade da
desdemocratização “se o país destrói seus arranjos distributivos e equalizadores que foram
construídos no capitalismo democrático, se os ricos desliguem suas redes de confiança da
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política e constroem comunidades fechadas e escolas privadas, podemos esperar que um
processo de desdemocratização ocorra”. (p.204) Sem dúvida. Mas como foi lento e difícil
construir as redes de confiança, tão lento quanto será sua destruição, e custa acreditar que
sociedades minimamente racionais farão tal coisa. Processos como esse que Tilly cita têm
ocorrido nos Estados Unidos, mas eles não se sustentam.
Milan Svolik (2008), estudando especificamente o problema da consolidação da
democracia, distinguiu as democracias consolidadas das que meramente sobrevivem, que ele
chamou de “democracias transicionais”. As variáveis que determinam se uma democracia está
consolidada são o nível de crescimento econômico do país, a taxa de crescimento, o fato de o
país ter um regime presidencialista ou parlamentarista, e o tipo de experiência autoritária do
país. Quanto mais rico o país for, mais consolidada será sua democracia. O nível de
desenvolvimento econômico é a variável fundamental. A ela o pesquisador adicionou duas
variáveis institucionais: os países presidencialistas e os países que foram governados por
regimes militares enfrentam uma probabilidade maior de colapso do que os países
parlamentaristas e que não tiveram governo militar. Essas variáveis, porém, são relevantes no
caso apenas das democracias transicionais. Mais recentemente, Iversen e Soskice (2019: 258),
que reconheceram a resiliência das democracias consolidadas, ofereceram como explicação
para esse fato que “a democracia prospera no capitalismo avançado porque as classes médias
são recompensadas com educação, bons empregos e mobilidade para cima”. É uma visão do
capitalismo que Przeworski introduziu quando, em Capitalismo e Social-Democracia, mostrou
que era racional para trabalhadores que estavam tendo emprego e salários crescentes rejeitarem
o socialismo. Isto não significa que esteja abolida a luta de classes, mas ajuda a explicar não
apenas por que não houve revolução socialista mas também porque as democracias nos países
ricos já duram mais de cem anos. E torna absurda a tese da morte aos poucos da democracia
que inclui as democracias avançadas e as compara com os regimes políticos de países em
estágio muito menos avançado de desenvolvimento e que não tiveram uma experiência
histórica de democracia.
Instituições democráticas ou organização da produção?
A democracia está consolidada, mas parece certo que as coisas não estão caminhando bem
no Ocidente, mesmo se deixarmos de lado a pandemia causada pelo Covid-19. Não estão bem
no plano político, no qual vemos partidos conservadores tradicionais passarem a apoiar líderes
populistas de direita e eles serem eleitos não obstante a irracionalidade de seu comportamento.
Não estão bem no plano econômico onde apenas os Estados Unidos continuam a crescer, mas
de maneira muito modesta, enquanto o resto do Ocidente está quase estagnado desde 2008;
onde se configura uma “estagnação secular’ definida por taxas de juros muito baixas e ampla
emissão de moeda pelos governos dos países ricos que, no entanto, não encorajam as empresas
a investir; onde as taxas de lucro são satisfatórias para as grandes empresas, mas que
igualmente não as estimulam a investir, porque elas não decorrem de uma demanda sustentada
para as corporações, mas de um incansável processo de fusões e aquisições visando construir
monopólios e aumentar as margens de lucro.
A questão é saber onde está o problema. A explicação que nos oferece o pensamento
hegemônico no Ocidente é que a crise é da democracia liberal e a sua causa é o populismo de
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direita. Eu estou afirmando que a crise não é uma crise da democracia desvirtuada pelo
populismo, porque este é apenas mais um sintoma político principal da crise. A crise hoje em
curso no capitalismo não é uma crise de regime político mas da forma que o capitalismo
assumiu a partir de 1980 – a forma neoliberal e financeiro-rentista – e que sua causa é a
incapacidade desse neoliberalismo de organizar o capitalismo de maneira razoavelmente
eficiente, razoavelmente estável, e razoavelmente menos injusta. Afirmo isto pensando no
Ocidente rico e nos países de renda média como o Brasil que embarcaram igualmente no
neoliberalismo e estão sofrendo as consequências. Excluo os países do Leste da Ásia e o
Sudeste da Ásia, onde seus Estados, não obstante as concessões que foram obrigados a fazer à
nova verdade imperial, se mantiveram basicamente desenvolvimentistas e vêm crescendo mais
depressa que o Ocidente; excluo principalmente a China, que já se transformou no país com o
maior PIB do mundo medido de acordo com a paridade do poder de compra, e hoje compete
em condições de igualdade com os Estados Unidos – uma coisa que há apenas dez anos atrás
era inimaginável. Em consequência desse caminho essencialmente equivocado adotado pelo
Ocidente, que reduziu o papel econômico do Estado e demandou do mercado resultados que
ele não pode produzir, o eixo econômico do mundo está se transferindo do Norte do Atlântico
para o Oriente. Nesse quadro de competição entre os Estados Unidos e a China, no qual o país
desafiante, a China, continua dominada pelo autoritarismo mas exibe uma forma
desenvolvimentista de organização econômica claramente mais eficiente, os defensores da
democracia e dos direitos civis no Ocidente são obrigados a ouvir dos dirigentes chineses seu
discurso agora mais ambicioso que fala sobre “a superioridade da solução chinesa” também no
plano político.
A crise do capitalismo neoliberal não é uma mera crise econômica; é também política,
social e ambiental. Logo, se o capitalismo está em crise, o respectivo regime democrático não
pode estar vivendo seus melhores dias. Está ameaçado. Mas para enfrentar essa ameaça a
solução não está em reformar as instituições políticas, mas em rever as principais instituições
que organizam o capitalismo contemporâneo – principalmente a forma pela qual o Estado
intervém no sistema econômico. Para avaliar essas duas explicações alternativas devemos nos
perguntar quais as instituições que se deterioraram. Foram acontecimentos que ocorreram na
relação do mundo rico com o resto do mundo? A nova competição representada pelos países
asiáticos? O aumento do número de imigrantes e exilados políticos procurando entrar nos
países ricos e a reação dos trabalhadores brancos? Ou os problemas foram políticos? Surgiram
em instituições como a democracia representativa, o sufrágio universal, o presidencialismo ou
o parlamentarismo, o sistema eleitoral distrital majoritário ou o sistema proporcional por listas
fechadas?9 nos partidos políticos? Ou foram mudanças no sistema tributário, nos recursos
destinados ao Estado do bem-estar social, na legislação trabalhista? Ou resultaram de
mudanças no sistema cultural, principalmente no avanço do individualismo possessivo de que
nos falava Macpherson (1962)? 10 Ou, no plano da sociedade, o problema maior foi a perda de
coesão social? Ou o problema econômico é estrutural; decorre da crescente relação capitalproduto
e queda da produtividade do capital, de forma que a taxa de lucro só está sendo
garantida devido à repressão salarial, a concessão de crédito às famílias acima de sua
capacidade de pagamento, e devido ao aumento do poder monopolista das grandes corporações
que aumentam gradualmente suas margens de lucro? Ou, no plano da política econômica, ela
deixou de garantir que os cinco preços macroeconômicos ficassem no lugar certo? A taxa de
juros caiu demais? Os governos perderam determinação de controlar os fluxos de capital? Ou
de realizar poupança pública para financiar o investimento público?
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Em outras palavras, vemos que o capitalismo enfrenta hoje uma crise profunda, que tenho
procurado discutir sob seus diversos aspectos através da Teoria Novo-Desenvolvimentista.
Uma crise que os analistas políticos da morte gradual da democracia, impactados pela eleição
em 2016 para a presidência dos Estados Unidos de um líder político que não é um simples
populista de direita, mas é uma figura em contradição com tudo o que aprendemos considerar
civilizado e digno nas sociedades modernas, entenderam ser apenas uma crise política quando
é muito mais do que isso.
A tese da morte gradual
Vejamos agora, brevemente, o que diz a tese da morte da democracia aos poucos. Começo
pelo livro de Levitsky e Ziblatt, distinguidos cientistas políticos da Universidade de Harvard,
Como As Democracias Morrem (2018). Os dois autores começam confirmando a ligação do
seu livro a Trump. Antes da sua eleição, dizem eles, nunca pensaríamos que a democracia
americana pudesse estar em perigo, mas, agora, “os políticos norte-americanos tratam seus
rivais como inimigos, intimidam a imprensa livre e ameaçam rejeitar os resultados das
eleições”.11 Ainda na introdução mostram sua preocupação com um problema maior, o da perda
de coesão da sociedade americana – mas em seguida voltam-se para o regime político: “se uma
coisa é clara ao estudarmos os colapsos ao longo da história, é que a polarização extrema pode
matar a democracia”.12 Estaria, então, a democracia americana ameaçada por um golpe militar
e a subida ao poder de um ditador? Não, não é isso que temem. O que eles temem são políticos
o